O anunciado regime especial de reclassificação de solo rústico em urbano, para fins habitacionais: ponto da situação sobre o regime vigente

O comunicado do Conselho de Ministros de 28 de novembro de 2024, anunciou a aprovação de um projeto de decreto-lei (que se encontra em fase de audições), de alteração do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, com o objetivo de permitir o aumento da oferta de solos destinados à construção de habitação, através do estabelecimento de um regime especial de reclassificação de solo rústico em solo urbano, cuja área maioritária deve obrigatoriamente ser afeta a habitação pública ou a habitação de valor moderado.

O anúncio vem suscitando alguma controvérsia na opinião publicada e divulgada, justificando um ponto da situação sobre o regime em vigor.

O regime do uso do solo assenta na classificação do solo em rústico e em urbano. A atual Lei Bases Gerais da Política Pública de Solos, Ordenamento do Território e Urbanismo redefiniu conceito de solo urbano.

O diploma anterior (Lei nº 48/98, de 11 de agosto) considerava que o solo urbano era «aquele para o qual é reconhecida vocação para o processo de urbanização e de edificação, nele se compreendendo os terrenos urbanizados ou cuja urbanização seja programada, constituindo o seu todo o perímetro urbano». Ou seja, a classe de solo urbano abrangia duas subclasses: (i) o solo urbanizado; e (ii) o solo cuja urbanização se encontrava programada (também denominado solo urbanizável).

A atual Lei de Bases veio reconduzir a classificação do solo como urbano aos terrenos total ou parcialmente urbanizados ou edificados, excluindo de tal classe os solos urbanizáveis ou cuja urbanização se encontrasse programada. Assim, passa a considerar como solo urbano aquele que «está total ou parcialmente urbanizado ou edificado e, como tal, afeto em plano territorial à urbanização ou à edificação».

Em rigor, a classificação de solo como urbano passou assim a exigir um procedimento em duas fases: em primeiro lugar, a constatação de que o terreno está total ou parcialmente urbanizado e edificado; em segundo lugar, a adequação do plano municipal à constatação de que o terreno se encontra total ou parcialmente urbanizado ou edificado.

O Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (Decreto-Lei nº 80/2015, de 14 de julho), enquanto decreto-lei de desenvolvimento da lei de bases, veio regular o regime da reclassificação de solos rústicos em urbanos (artigo 72º). Esse regime condiciona significativamente a transferência de terrenos integrados na classe de solo rústico para a classe de solo urbano:

  1. a reclassificação do solo rústico para solo urbano tem caráter excecional.
  2. a reclassificação de solo rústico para solo urbano deve corresponder a uma procura efetiva para a qual não exista oferta adequada.
  3. a reclassificação de solo rústico para solo urbano pressupõe uma avaliação prévia do desgaste no território provocado pela afetação do terreno a usos urbanísticos, tendo em conta a infraestruturação existente.
  4. a reclassificação de solo rústico para solo urbano exige a demonstração da viabilidade económico-financeira da afetação do terreno à classe de solo urbano, por referência às fontes de financiamento públicas e privadas a mobilizar.

A dificuldade de reclassificar solo rústico em solo urbano projeta-se, também, na dimensão procedimental, por três ordens de razões:

  1. a reclassificação de solo rústico para solo urbano só pode ser operacionalizada através da aprovação de um plano de pormenor com efeitos registais (i.e., um plano de pormenor que permite, só por si, a individualização no registo predial dos prédios resultantes das operações de transformação fundiária nele previstas).
  2. o programa de execução do plano de pormenor com efeitos registais deve especificar o prazo durante o qual têm de ser realizadas as obras de urbanização e ou as edificações, já que a classificação do solo como urbano não é uma opção do plano, mas da constatação da efetiva urbanização ou edificação do solo e causa.
  3. a reclassificação de solo rústico em urbano só se conclui com a alteração do regime do uso do solo estabelecido no plano diretor municipal se, após o termo do prazo de execução do plano de pormenor com efeitos registais, tiverem sido executadas as operações urbanísticas nele previstas.

A eliminação da subclasse de solo urbanizável ou de solo cuja urbanização se encontrasse programada, visou combater o caráter especulativo da manutenção de terrenos expectantes, correspondente a um comportamento manifestamente anti urbanístico, e que apenas visava o incremento artificial do valor do terreno. Mas ao fazê-lo, corroeu o núcleo identificador e caraterístico do planeamento urbanístico: a liberdade de programar o uso, ocupação e transformação do solo, de acordo com uma ideia de ordenamento para o espaço territorial em causa. Na verdade, a classificação do solo como urbano deixou de corresponder estritamente a uma opção de planeamento, já que o solo urbano não é aquele que se pretende destinar a usos urbanísticos, mas aquele que já está urbanizado ou edificado.

O regime estabelecido no artigo 72º do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial corresponde ao programa da lei de bases, e dificulta muito a possibilidade de reclassificar solo rústico para solo urbano.

A solução normativa que tenho vindo a caraterizar, corresponde a uma boa intenção, mas muito má concretização.

Os municípios, os agentes que operam nesta área, e o próprio legislador foram-se apercebendo, naturalmente, dos efeitos perversos da solução normativa, e da necessidade de introduzir elementos paliativos.

Assim, o Decreto-Lei nº 10/2024, de 8 de janeiro, conhecido como «Simplex Urbanístico», introduziu dois novos artigos no Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, com o objetivo de flexibilizar a reclassificação de solo rústico para solo urbano (artigos 72º-A e 72º-B).

O artigo 72º-A veio estabelecer um procedimento simplificado de reclassificação dos solos (de rústico para urbano), destinados à instalação de atividades industriais, de armazenagem ou logística e serviços de apoio, ou a portos secos. O procedimento simplificado é também aplicável, com adaptações, à reclassificação de solo rústico para urbano destinado a habitação a custos controlados ou uso habitacional, desde que previsto em estratégia local de habitação, carta municipal de habitação ou bolsa de habitação.

A reclassificação de solo rústico para solo urbano a que se aplica o procedimento simplificado não pode abranger solo localizado em áreas sensíveis, na Reserva Ecológica Nacional ou na Reserva Agrícola Nacional.

Na minha opinião, este procedimento simplificado não só não alivia o caráter radicalmente fechado da reclassificação de solo rústico para solo urbano, como acentua a corrosão dos poderes de planeamento ao estabelecer um procedimento de reclassificação fora do plano (de duvidosa constitucionalidade, face à reserva de determinação do regime do uso do solo através de plano urbanístico, extraível do nº 4 do artigo 65º da Constituição).

Finalmente, o artigo 73º-B veio admitir a reclassificação do solo rústico para solo urbano, sempre que a finalidade prevista seja habitacional, a propriedade do solo seja exclusivamente pública e o solo esteja situado na contiguidade de solo urbano, através do procedimento de alteração simplificada consagrado no artigo 123.º do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, à margem do regime estabelecido no artigo 72º.

As situações a que este artigo se aplica serão marginais.

É para flexibilizar este regime jurídico que o Governo pretende criar um regime especial de reclassificação de solo rústico para solo urbano, maioritariamente destinado à criação de habitação pública ou a habitação de valor moderado, com o objetivo de permitir o aumento da oferta de solos destinados à construção de habitação.

A avaliação da solução normativa proposta não pode ser efetuada antes do conhecimento do projeto (que, ao que julgo, não se encontra em circulação pública). Em todo o caso, é possível concluir desde já que se trata de um novo remendo ou de mais um penso rápido: a doença resulta do caráter profundamente anti urbanístico do próprio conceito de solo urbano.

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