I. Introdução
- No Acórdão de 16 de novembro de 2023, proferido no Processo n.º 01482/05.0BELSB , o Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) foi chamado a apreciar, em sede de revista, se um despacho proferido pelo Gestor do POSI – Programa Operacional Sociedade de Informação, que aprovou o relatório final da ação de controlo e ordenou a restituição de quantias atribuídas a título de comparticipações financeiras com base em fundos europeus, conjugado com a notificação da ordem de devolução dessas quantias, constituíam revogação da decisão que aprovou a candidatura e atribuiu o financiamento à Fundação, beneficiária.
As linhas que se seguem pretendem analisar esta decisão apenas quanto ao entendimento adotado pelo STA na questão de saber se, no caso, existia uma “reserva de revogação implícita” da decisão de aprovação.
II. Contexto
- A Fundação intentou ação administrativa especial de impugnação de ato contra a Autoridade de Gestão (“AG”) do POSI e o Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (“MCTES”), peticionando a anulação do ato do Gestor do POSI que ordenou a restituição das quantias.
O Tribunal Administrativo de Círculo (“TAC”) de Lisboa julgou a ação parcialmente procedente: absolveu as entidades demandadas dos pedidos condenatórios, mas anulou o ato impugnado, sustentando que se encontrava ferido de incompetência por revogar parcialmente a decisão de aprovação da candidatura por parte do MCTES. - As partes interpuseram recurso dessa sentença para o Tribunal Central Administrativo (“TCA”) Sul, que concedeu provimento aos recursos do MCTES e da AG e negou provimento ao recurso da Fundação.
O TCA Sul entendeu que a decisão do TAC padecia de erro de julgamento, afirmando que “[n]ão há, pois, qualquer revogação no sentido técnico da palavra, reconhecendo o próprio aresto recorrido a existência de incumprimento das disposições legais comunitárias, o que torna inviáveis os pedidos de condenação efetuados” . - A Fundação interpôs recurso de revista do acórdão do TCA Sul, argumentando que o Gestor do POSI procedeu a uma revogação implícita de um ato constitutivo de direitos e que, por esse motivo, estaria viciado por incompetência e falta de fundamentação. O MCTES e a AG pugnaram ambos pela manutenção do decidido pelo TCA Sul, sustentando que os atos em questão não teriam o caráter de revogação da anterior decisão que aprovou a candidatura.
III. A Decisão
- O STA julgou improcedente o recurso interposto pela Fundação e confirmou o acórdão recorrido, afastando-se, no entanto, da fundamentação do TCA Sul.
Como resulta do sumário do aresto, o Supremo Tribunal entendeu que os despachos do Gestor do POSI de concordância com o controlo da ação de fiscalização e que determinaram a restituição de comparticipação financeira “constituem a concretização da reserva de revogação imposta por lei, emanados no uso da competência cometida ao Gestor do POSI para as matérias e assuntos enunciados na fase procedimental de controlo de 1.º nível concomitante à execução da comparticipação financeira atribuída (…)”. - Na base desta decisão e do entendimento do STA quanto à questão da revogação encontram-se as seguintes premissas:
(i) Os atos que aprovaram a candidatura e determinaram o montante de financiamento atribuído “não estabeleceram uma situação de certeza e segurança relativamente à relação jurídica constituída pela aprovação do projeto, posto que a posição vantajosa constituída na esfera jurídica do particular (…) é susceptível de ser ulteriormente alterada no âmbito do procedimento administrativo de fiscalização e controlo dos fundos públicos atribuídos em sede de POSI (…) por disposição expressa de lei (…)”.
(ii) Trata-se, assim, de atos precários, o que decorre da “cláusula acessória de reserva de revogação fundada no procedimento de fiscalização da execução do projecto aprovado, procedimento subsequente à aprovação da candidatura e concessão do financiamento” – isto é, uma reserva de revogação imposta pela lei.
(iii) Uma cláusula deste tipo já seria admissível à luz do disposto no artigo 121.º do CPA anterior: este preceito “não consagra um elenco taxativo e fechado”, pelo que será suficiente que “não haja expressa interdição legal da referida cláusula (…), isto é, que por disposição expressa de lei não seja obstaculizada a sujeição do concreto acto administrativo constitutivo de direitos e, consequentemente, da situação jurídica por ele criada, a um regime de precariedade”.
(iv) O acionamento da cláusula de reserva de revogação tem assento em dois fundamentos: por um lado, no quadro legal e regulamentar aplicável, que atribui competências ao Gestor do POSI para fiscalizar a execução do apoio concedido ; por outro, na expressa concordância do beneficiário, que assinou o Termo de Aceitação. - O STA concluiu, assim, que os três pressupostos que a doutrina admite para os atos precários se encontram verificados: (i) imposição legal do caráter precário do ato; (ii) concordância prévia e expressa do destinatário do ato com a possibilidade de ulterior alteração da sua situação jurídica e (iii) aposição ao ato de cláusula de reserva de revogação.
O Acórdão salienta que “é precisamente o bloco normativo referido quanto à concessão de fundos públicos sob reserva de revogação que retira fundamento legal ao enquadramento sustentado pela Recorrente FA… no sentido de configurar o despacho do Gestor do POSI de 04.02.2005, conjugado com a notificação de 15.03.2005 que ordenou a devolução de (…) como revogação implícita do despacho ministerial de 03.04.2002 na parte atributiva da comparticipação financeira (…)”.
Considerou, enfim, o STA que, atribuindo a lei ao Gestor do POSI competência para fiscalizar e praticar atos na fase de controlo de primeiro nível, o seu despacho de 04.02.2005 “conjugado com o despacho impositivo da devolução no montante total (…) constitui a concretização da reserva de revogação imposta por lei (…)”.
IV. Considerações finais
- O Acórdão em questão representa um contributo importante para a compreensão da figura da reserva de revogação, hoje expressamente contemplada no artigo 149.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo. Além de confirmar a sua admissibilidade à luz do regime anterior, o STA clarifica os contornos da sua aplicação, enquadrando um ato que determinou a restituição de apoios concedidos ao abrigo de fundos europeus como abrangido por reserva de revogação.
- O entendimento subjacente a esta decisão é particularmente interessante uma vez que o STA considerou, no passado, ao abrigo de um quadro jurídico distinto, pela não precariedade ou provisoriedade de um ato atributivo de ajudas comunitárias, assim como pela natureza revogatória de uma decisão que ordenou a reposição das quantias pagas . Nessa sede, afirmou ainda que “a reserva de revogação e a condição resolutiva aposta a um acto administrativo, para serem operantes, têm de ser expressas e resultar do acto e do respectivo tipo legal”.
Por outro lado, a propósito da figura da revogação implícita num diferente contexto, o STA também afirmou que “não haverá, contudo, verdadeira revogação, mas mero acto de sinal contrário, se o mesmo não tem por fundamento, causa ou referente directo o acto anterior, apresentando-se como autónomo (pressupostos, tipo legal, exercício de competência distintos)” . Esta recente decisão também revela, de certo modo, a evolução da jurisprudência na aplicação de conceitos e institutos “clássicos” do direito administrativo.