A litigância climática – um fenómeno global com impactos locais

A litigância climática – um fenómeno global com impactos locais

O desenvolvimento do direito do ambiente, em todos os níveis de regulação (internacional, europeu e nacional), levou, como sempre seria inevitável, ao aumento exponencial de casos em tribunal dedicados a problemas ambientais. Contudo, o fenómeno da litigância climática – ou seja, casos em tribunais (nacionais e internacionais) em cujo objeto assume centralidade a mitigação de alterações climáticas, a adoção de medidas de adaptação – tem características específicas sobre as quais vale a pena refletir.

Em primeiro lugar, as questões climáticas têm causas estruturalmente difusas e os impactos são sentidos de forma praticamente indiferenciada entre as pessoas de certas regiões. Esta particularidade cria desafios em matéria de legitimidade processual em muitos ordenamentos jurídicos. No caso português, o facto de ser reconhecido o direito de ação de popular para defesa de interesses difusos (cfr. Lei n.º 83/95, de 31 de maio, além de outras previsões normativas específicas, com o artigo 9.º, n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos) limita a relevância deste problema de natureza processual.

Contudo, o problema mantém-se de um ponto de vista substantivo. Em concreto, a Constituição da República Portuguesa reconhece o direito ao ambiente (artigo 66.º) e a Lei de Bases do Clima (Lei n.º 98/2021, de 21 de dezembro) reconhece o direito ao equilíbrio climático. A natureza jurídica destes direitos – por exemplo, se são direitos negativos ou positivos, e se são judicialmente invocáveis ou não – é um tema decisivo sobre a qual os tribunais portugueses poderão vir a ter de se pronunciar a breve trecho, atendendo à recente propositura da primeira ação climática nos tribunais nacionais.

Em segundo lugar, os efeitos das alterações climáticas são transfronteiriços. Tal significa, desde logo, que os tribunais com jurisdição sobre o território no qual ocorreu a causa (ou seja, a emissão de gases com efeitos de estufa) são diferentes daqueles com jurisdição sobre o território no qual ocorrem as consequências (ou seja, os danos resultantes das emissões). Competirá a cada tribunal, de acordo com as regras vigentes em cada sistema jurídico, definir se tem competência para decisões de casos climáticos, mas, em qualquer, é possível antever que possivelmente os tribunais de todos os Estados têm jurisdição para decidir qualquer caso de litigância climático, dado que não é possível estabelecer nexos de causalidade entre certa emissão e uma consequência dessa emissão. Note-se, ainda, que esta dúvida é um dos temas principais a resolver na decisão quanto à admissibilidade da ação colocada por jovens portugueses contra 32 Estados perante o Tribunal Europeu de Direitos Humanos.

Em terceiro lugar, os efeitos das alterações climáticas são diferidos no tempo. Esta circunstância é relevante em várias dimensões. No caso de queixas com fundamento no regime de proteção de direitos humanos ou de direitos fundamentais (um dos fundamentos frequentemente utilizado em casos de litigância climática), é incontornável decidir se a ameaça de lesão futura é suficiente para arguir uma violação destes direitos. Mais do que isso, é crucial definir se os deveres relativos a esses direitos se expandem para proteção de gerações futuras.

Em quarto lugar, deve ainda notar-se que todos os casos têm uma grande complexidade fáctica e técnica, levando a que os tribunais estejam inteiramente dependentes do conhecimento científico na tomada de decisão. Os relatórios do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas têm servido de base para quase toda a matéria probatória invocada nestes casos.

Vale ainda a pena mencionar que a maioria dos casos em Estados europeus invoca, a par de direito nacional, normas de direito internacional. Este é também um contexto, portanto, no qual os tribunais nacionais estão a intensificar o seu papel enquanto órgãos fundamentais de aplicação e garantia de cumprimento do direito internacional.

A vasta maioria dos casos de litigância climática – que ascendem já aos milhares, de acordo com o último relatório da London School of Economics and Political Science – é de litigância estratégica. Em cada decisão visa-se estabelecer precedentes jurídicos em matérias processuais e também substantivas, e especificar os deveres jurídicos das entidades públicas, mas recentemente também de empresas. Estes precedentes, não tendo em regra força jurídica enquanto tal, têm na base a autoridade material que cada tribunal tem através da suscetibilidade de influenciar decisões de tribunais de outros Estados, numa manifestação intensa de fertilização cruzada.

As ações de litigância climática são muito diversificadas – mas todas elas contribuem para identificar, especificar e alargar os limites jurídicos à ação política, não se antevendo que haja, a breve trecho, uma diminuição do papel central dos tribunais na resolução destes problemas jurídicos complexos.