Como é sabido, o regime da impugnação e do recurso de decisões arbitrais em matéria administrativa encontra-se regulado, em geral, no artigo 185.º-A do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”).
Este artigo foi objeto de alterações muito significativas em 2019, através da Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, que aditou os números 2 e 3, nos quais se passou a prever, respetivamente, a recorribilidade das decisões arbitrais para o Tribunal Constitucional (o que constituiu a consagração expressa de uma possibilidade já amplamente reconhecida e praticada) e, em termos mais inovadores, o recurso para a uniformização de jurisprudência e o recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo (“STA”).
No que respeita concretamente ao recurso de revista de decisões arbitrais, a possibilidade introduzida na alínea b) do n.º 3 do artigo 185.º-A do CPTA constituiu uma das mais discutidas alterações efetuadas pela referida Lei n.º 118/2019, já que representou a criação de uma nova instância de controlo daquelas decisões pela jurisdição administrativa, suscitando, inerentemente, uma série de questões e dúvidas.
Do ponto de vista do regime, a alínea b) reproduziu os requisitos de admissibilidade previstos no n.º 1 do artigo 150.º do CPTA, remetendo expressamente para este artigo, pelo que, com as devidas adaptações, estes requisitos não se afastam muito do regime geral.
Da mesma forma, houve desde o início um consenso relativamente generalizado (posteriormente confirmado pela jurisprudência) de que, ainda que haja quem discorde da respetiva necessidade ou adequação, este “novo” recurso de revista das decisões arbitrais constitui uma via independente da vontade das partes, isto é, que não pode ser afastada por acordo das mesmas.
Diferentemente, no entanto, uma outra questão paralela surgiu relativa à admissibilidade deste recurso de revista, qual seja a de saber como se conjugaria este n.º 3 do artigo 185.º-A do CPTA com as inúmeras convenções de arbitragem anteriormente celebradas em que as partes expressamente afastaram a possibilidade de recurso da decisão arbitral.
Ou seja, com a criação de uma nova via de recurso das decisões arbitrais independente da vontade das partes, suscitou-se a questão de saber se aquela norma do CPTA seria de aplicação imediata, abrangendo todos os processos arbitrais iniciados ou por iniciar, prevalecendo sobre a vontade que as partes tinham manifestado anteriormente de não haver recursos da decisão arbitral, ou se poderia haver modelações na sua aplicabilidade, apenas podendo abranger litígios arbitrais iniciados após a respetiva entrada em vigor ou, numa visão ainda mais ampla e quando as partes tivessem excluído os recursos, apenas podendo respeitar a litígios abrangidos por convenções arbitrais celebradas após essa data.
Subjacente a esta discussão está, como não poderia deixar de ser, a consideração do respeito pelo princípio da proteção da confiança (e, em termos mais amplos, do princípio do Estado de direito democrático), cabendo equacionar se, à luz daquele princípio, o recurso de revista de decisões arbitrais seria também admissível quando existisse uma convenção de arbitragem anterior em que as partes tivessem validamente afastado qualquer recurso da decisão final.
O ponto de situação que se pode fazer atualmente é o de que a jurisprudência do STA, e o próprio Tribunal Constitucional, têm respondido de forma uniforme a esta questão, tendo considerado (i) que o recurso de revista de decisões arbitrais é admissível em qualquer situação, exista ou não convenção de arbitragem anterior a excluir os recursos daquela decisão e (ii) que este entendimento não determina qualquer violação dos princípios do Estado de direito democrático e do princípio da proteção da confiança.
Com efeito, logo através do seu Acórdão de 5.05.2022, proferido no processo n.º 07/22.7BALSB, o STA afirmou duas ideias essenciais:
(i) Por um lado, considerou que a renúncia pelas partes aos recursos de decisões arbitrais antes da vigência do n.º 3 do artigo 185.º-A do CPTA apenas pode respeitar “à possibilidade de recurso da decisão arbitral para o respectivo tribunal de apelação, no caso, para o Tribunal Central Administrativo, uma vez que este configurava um recurso exclusivamente dependente da vontade das partes (…)”, pelo que, “através dela, não se pode concluir pela sua renúncia a um recurso futuro, ainda inexistente na ordem jurídica no momento em que a mesma foi efectivada”;
(ii) Por outro lado, sublinhou, em termos mais genéricos, que “este recurso de revista foi introduzido com o alcance de permitir submeter a integralidade da jurisprudência arbitral – de Direito Administrativo – ao crivo do Supremo Tribunal Administrativo – enquanto tribunal de revista-, pela via de um recurso cujo âmbito de admissibilidade cabe ao próprio STA delimitar, em função de certos critérios legais. Para além disto, com a sua introdução pretendeu-se, também, reforçar as garantias de impugnação e conformidade da «arbitragem de Direito Administrativo» aos parâmetros de exigência por que se deve reger, tendo em devida consideração que versa sobre «condutas jurídicas da Administração», sujeitas ao dever de «prossecução do interesse público» e à «sua sujeição à lei».
Uma diferente interpretação e aplicação das ditas disposições, no sentido de considerar integrado no âmbito da renúncia ao recurso da decisão arbitral também o «recurso de revista» instituído pela alínea b), do nº3, do artigo 185º-A do CPTA – na redacção da Lei nº118/2019, de 17.09 -, resultaria numa restrição, indevida, do universo das situações que permitem o acesso à justiça e na entrega, exclusiva, às partes, da realização do escopo legal visado pelo legislador”.
O assim decidido foi posteriormente reafirmado no Acórdão de 15.12.2022, proferido no processo n.º 0132/22.4BALSB, em que, remetendo para o Acórdão acabado de citar, o STA acrescentou que o entendimento perfilhado quanto à admissibilidade do recurso de revista mesmo perante convenções arbitrais em que as partes excluíram os recursos “em nada conflitua com o princípio da segurança jurídica/ proteção da confiança, com assento constitucional, pois a normação em crise, por sua natureza e finalidade prosseguida, não atenta de uma forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva, os mínimos de certeza, razoabilidade, proporção, segurança e confiança, inexistindo sustentabilidade legítima formada ou estribada numa expectativa da imutabilidade ou de imodificabilidade do quadro legal aferida quer num plano abstrato quer no plano ou quadro concreto da situação relacional sub specie”.
Esta decisão veio a ser recentemente confirmada pelo Tribunal Constitucional, que, em recurso de constitucionalidade dela interposto, decidiu, através do Acórdão n.º 654/2023, de 10.10.2023, “não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 185.º-A, n.º 3, alínea b), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, interpretada no sentido segundo o qual a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão deduzida que ponha termo ao processo arbitral é suscetível de recurso nas hipóteses ali previstas, ainda que a relação jurídica objeto do litígio se haja constituído no domínio da lei anterior à aprovação do referido preceito pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro”.
Entre os diversos fundamentos apresentados neste Acórdão, o Tribunal Constitucional sublinha que o sentido do n.º 3 do artigo 185.º-A do CPTA é “de reforçar os mecanismos de tutela recursória das partes na justiça arbitral, em situações que, como vimos, são análogas às da revista excecional em contencioso administrativo. Trata-se de um propósito constitucionalmente legítimo, na medida em que um regime robusto de recursos, ainda que não constitucionalmente imposto em todos os casos, reforça a posição das partes. Aliás, a circunstância de se tratar, antes de mais, de uma norma atributiva de direitos processuais (o que a recorrente não coloca na devida luz apenas por ser parte interessada na não admissão do recurso) contribui decisivamente para o reconhecimento da prossecução de um interesse legítimo pelo legislador”.
Nesta medida, considerou-se que não havia violação do princípio da proteção da confiança, até porque, “até ao início do litígio não existe um processo pendente, razão pela qual dificilmente se poderá falar, com propriedade, de uma expetativa concreta quanto ao momento do seu desfecho. Pelo contrário, e sem prejuízo de as relações jurídicas estarem constituídas antes de os litígios se iniciarem (como, aliás, é da sua natureza), a consideração do início da ação como sendo o marcante para aferir da recorribilidade é, em geral aceite”, destacando-se ainda a ideia de que “No caso dos autos, em suma, a expetativa de que trata a recorrente não é, pois, objetiva, mas, no essencial, subjetivamente ditada pelo desfecho do processo em que mostra interesse pontual e acidental, interesse que seria outro com diferente desfecho”.
Neste quadro geral, verifica-se, então, que tanto o STA, como Tribunal Constitucional, se pronunciaram, até agora, pela aplicabilidade imediata do artigo 185.º-A, n.º 3, alínea b), do CPTA, tendo sido considerados admissíveis os recursos de revista interpostos de sentenças arbitrais, mesmo quando as partes tenham, ao abrigo do direito anterior, excluído a possibilidade de recurso.
Desta forma, e sem prejuízo, naturalmente, de no futuro poder ocorrer alguma inflexão no entendimento jurisprudencial que se formou até ao momento, vai ficando clara a resposta às dúvidas que foram inicialmente colocadas a este propósito, que têm merecido uma solução uniforme por parte dos nossos Tribunais.
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