O incumprimento da obrigação de disponibilização do livro de reclamações eletrónico: a tutela contraordenacional não exclui a tutela (coletiva) civil

O incumprimento da obrigação de disponibilização do livro de reclamações eletrónico: a tutela contraordenacional não exclui a tutela (coletiva) civil
  1. O Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro, instituiu a obrigatoriedade de existência e disponibilização do livro de reclamações a todos os fornecedores de bens e prestadores de serviços que tenham contacto com o público em geral. No preâmbulo deste diploma, destaca-se a relevância do livro de reclamações como instrumento facilitador do exercício do direito de queixa, sendo reconhecido o seu papel na prevenção de conflitos e na promoção da melhoria da qualidade dos serviços prestados e dos bens comercializados. Posteriormente, com o objetivo expresso de modernizar e simplificar o regime existente, particularmente no que diz respeito à desmaterialização do livro de reclamações e aos procedimentos associados, o Decreto-Lei n.º 74/2017, de 21 de junho, introduziu alterações no Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro, pelas quais, no que aqui releva, se criou a obrigatoriedade de disponibilização do livro de reclamações em formato eletrónico, estabelecendo os termos para a sua implementação (artigos 2.º, 3.º e 5.º-B).
  2. Neste diploma, foram previstas sanções para o incumprimento desta obrigação legal, com recurso ao regime de mera ordenação social. Em particular: a falta de disponibilização do livro de reclamações eletrónico constitui contraordenação económica grave, punível nos termos do Regime Jurídico das Contraordenações Económicas (RJCE) (artigo 9.º, n.º 1, em articulação com o artigo 5.º-B, n.os 1 a 3). Desta forma, nos termos em que se encontra plasmado no Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro, o incumprimento desta obrigação é regulado como uma ilicitude contraordenacional, sem que ao mesmo sejam associadas sanções de outra natureza.
  3. O problema aqui tratado, e que esteve na base de um acórdão de 26 de novembro de 2024 do Supremo Tribunal de Justiça , prende-se com saber se é admissível o recurso à ação popular (civil) para compelir uma empresa faltosa ao cumprimento desta obrigação legal (disponibilização do livro de reclamações eletrónico), ainda que a letra da lei atribua à violação dessa obrigação um tratamento sancionatório circunscrito ao domínio contraordenacional.
    De outro ângulo, o que se indaga é se o facto de o comportamento imputado à empresa (falta de disponibilização do livro de reclamações eletrónico) ser, em abstrato, reconduzível a um tipo de ilícito contraordenacional, afasta a possibilidade de, em ação de natureza civil, ser aquela compelida ao cumprimento da obrigação legal.
  4. Esta questão parte de uma premissa clara e indisputável: a mesma conduta do sujeito (a conduta definidora do ilícito é a não disponibilização do livro de reclamações eletrónico, nos moldes exigidos no Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro) pode desencadear diversas “ilicitudes” (civil, penal, contraordenacional, etc.), a que corresponderão diferentes reações do ordenamento jurídico nos diferentes planos em que tal ocorrência revista relevância.
  5. O problema que emerge no caso decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça reside no facto de o Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro, se limitar prever uma sanção para este concreto tipo de ilícito no âmbito contraordenacional, sem, contudo, prever explicitamente qualquer ilicitude de natureza civil ou delinear os correspondentes mecanismos de tutela no domínio do Direito Civil. O que suscita dificuldades na articulação das diferentes respostas jurídicas aplicáveis, particularmente no que concerne à possibilidade de recurso à tutela civil como via autónoma e complementar para a reposição da legalidade.
  6. Mais detalhadamente, em apreciação estava uma ação popular intentada por uma associação de defesa dos consumidores contra uma empresa que comprovadamente incumpriu a obrigação legal de disponibilização do livro de reclamações eletrónico, e que se mantinha em incumprimento. Em ação declarativa de condenação, a associação pediu que a empresa ré fosse condenada a disponibilizar aos consumidores residentes em território português um livro de reclamações eletrónico, sob pena de aplicação de sanção pecuniária compulsória de montante a determinar pelo tribunal por cada dia de atraso, bem como a pagar à associação o montante da procuradoria correspondente à iniciativa processual descrita.
    O tribunal de primeira instância, baseando-se na regulação deste ilícito no Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro, decidiu que, constituindo o incumprimento da empresa ré uma contraordenação, e não um ilícito de natureza civil, os consumidores lesados por esse incumprimento deveriam reagir via procedimento contraordenacional, excluindo a possibilidade de ação popular civil para exigir a reposição da legalidade.
    Mais entendeu o tribunal de primeira instância que a ilicitude da conduta imputada à empresa ré deveria ser reprimida nos termos de uma “quase-ação popular penal”, nos termos do disposto do artigo 25.º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, diploma que regula o direito de participação procedimental e de ação popular – ou seja, nos termos do direito penal, e não nos termos do direito civil, como havia sido feito na ação sub judice. Conforme ficou expresso na sentença recorrida, “entende-se que, face à configuração da ação constante da petição inicial (onde não é formulada pretensão de natureza indemnizatória pelo ilícito), a denúncia, permitida pelo artigo 25.º, LAP, com vista à perseguição contraordenacional, é a tutela ao dispor dos consumidores para reagir contra a falta de livro de reclamações eletrónico”. Por essa razão, o tribunal de primeira instância indeferiu liminarmente a petição inicial da associação autora.
  7. Chamado a pronunciar-se por ter sido interposto recurso de revista per saltum, o Supremo Tribunal de Justiça reconheceu a pretensão da associação de consumidores, revogando a decisão do tribunal de primeira instância. Concluiu este tribunal superior o seguinte:
    (i) O pedido da associação autora cai no âmbito do direito civil e não contraordenacional ou penal, porquanto o regime do livro de reclamações confere um direito aos consumidores – o de apresentarem uma reclamação através de livro eletrónico – que podem fazer uso dos mecanismos legais para garantirem a possibilidade de exercerem esse seu direito e o respeito pela obrigação correspetiva da empresa ré. De modo particular, tal prerrogativa é passível de ser exercida através do instituto da ação popular, sempre que, como no caso em apreço, seja reconhecida legitimidade ativa aos autores populares, uma vez que o incumprimento em questão configura uma lesão direta aos interesses difusos relativos à proteção dos direitos dos consumidores;
    (ii) A ação popular civil pode revestir qualquer das formas previstas no Código de Processo Civil, incluindo ações declarativas de simples apreciação ou de condenação. É, assim, irrelevante o facto de a associação autora não ter associado o seu pedido a qualquer pretensão indemnizatória individualizada pelo ilícito;
    (iii) Não se pode excluir a possibilidade de uma ação declarativa de natureza civil, incluindo por intermédio de uma ação popular, no cumprimento de uma obrigação legal com o fundamento de que a violação dessa obrigação pode ser sancionada com uma contraordenação, “pois os particulares têm o direito de pedir aos tribunais que ordenem o restabelecimento da legalidade e não se podem encontrar limitados a peticionar tal às autoridades administrativas e tão pouco estão dependentes da decisão destas de atuarem (ou não) para verem protegidos os seus direitos”;
    (iv) O disposto no artigo 25.º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, invocado pelo Tribunal a quo, tem por objetivo a ampliação dos direitos atribuídos aos autores populares, e não a limitação ou restrição daqueles que lhes foram previamente conferidos, quer pela Constituição da República Portuguesa, quer pela própria legislação ordinária em questão. Tal norma deve, portanto, ser interpretada como um mecanismo de reforço e não, ao invés, como um fator de contenção de direitos subjetivos.
  8. Com isto, o Supremo Tribunal de Justiça esclareceu que o direito de ação popular, consagrado no artigo 52.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, que permite a promoção de ações para prevenir, cessar ou sancionar violações aos direitos dos consumidores, entre outros interesses difusos ou coletivos, compreende também a reação a violações que são tipificadas, na lei, exclusivamente como ilícitos contraordenacionais. Desta forma, a mesma conduta (neste caso, omissiva) pode gerar um resultado antijurídico em diversas dimensões (civil, penal, contraordenacional) – viole essa conduta apenas uma norma parametrizadora (como é o caso) ou várias normas parametrizadoras de licitude. Pelo que é de rejeitar a ideia de que a positivação de apenas uma sanção contraordenacional exclui a tutela civil dos sujeitos lesados, incluindo, por via da ação popular.
  9. Justifica também o Supremo Tribunal de Justiça que vedar o uso da ação popular civil neste caso seria incompatível com (i) o princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa), porque a limitação do exercício do direito de ação popular a procedimentos contraordenacionais privaria os consumidores de uma tutela civil efetiva para exigir diretamente a reposição da legalidade, bem como com (ii) o acesso a uma tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa), pois tal implicaria uma restrição injustificada ao direito dos consumidores de obterem proteção jurídica direta e eficaz.
  10. Desta forma, foi dado provimento ao recurso interposto pela associação de consumidores, reconhecendo o tribunal superior que a ação popular civil é um meio admissível para exigir o cumprimento da obrigação de disponibilizar o livro de reclamações eletrónico, mesmo que tal omissão também configure uma infração contraordenacional.
  11. O entendimento do Supremo Tribunal de Justiça neste acórdão constitui um marco jurisprudencial significativo por duas razões:
    (i) Vem reforçar a amplitude e a eficácia do direito de ação popular, reconhecendo o alargamento das opções disponíveis para a proteção dos interesses difusos e coletivos, como os direitos dos consumidores;
    (ii) Elucida o princípio da complementaridade entre diferentes tutelas jurídicas, reconhecendo que a qualificação de uma conduta como ilícito contraordenacional não exclui a possibilidade de reação através de mecanismos civis. Este entendimento evita lacunas na proteção dos direitos e assegura a harmonização do sistema jurídico. No âmbito específico do direito do consumo, esclarece-se que ausência de previsões normativas específicas sobre ilícitos de natureza civil (ou sobre normas sancionatórias de natureza civil) não é impeditiva do recurso a mecanismos de tutela civil por esses consumidores, em particular, com recurso à tutela coletiva proporcionada pela ação popular.