Mitos e verdades em torno da aprovação da Lei do Orçamento do Estado

Mitos e verdades em torno da aprovação da Lei do Orçamento do Estado

Estando em curso o processo legislativo de aprovação da Lei do Orçamento do Estado para 2025 (a Proposta de Lei n.º 26/XVI/1​ – Aprova o Orçamento do Estado para 2025 foi entregue pelo Ministro das Finanças ao Presidente da Assembleia da República no dia 10 de outubro, ato que marca o início do processo orçamental) parece oportuno relembrar alguns pontos relevantes atinentes a este procedimento:

​​​​​​I. A Lei do Orçamento do Estado (LOE) apresenta uma dupla natureza: sendo uma lei de valor reforçado, nos termos do artigo 112.º, n.º 3, da Constituição, ela própria tem de respeitar outros atos legislativos infraconstitucionais, em particular a Lei de Enquadramento Orçamental (LEO)[1].

Contudo, ter valor reforçado não implica necessariamente uma maioria agravada de aprovação. Na verdade, a LOE carece de maioria relativa nas três votações (generalidade, especialidade e votação final global), nos termos da regra geral do artigo 116.º, n.º 3 da Constituição: mais votos a favor que contra, não contando as abstenções para o apuramento da maioria.

Daí a pertinência de compreender, no caso dos partidos da oposição, qual será o sentido de voto dos Deputados: como é evidente, em caso de voto negativo (sobretudo no quadro de executivos com apoio parlamentar minoritário), a proposta de LOE poderá vir a ser rejeitada. Já se houver um número expressivo de abstenções, será ainda possível a aprovação do Orçamento, mesmo que apenas com o voto a favor dos Deputados do(s) partido(s) que sustenta(m) o Governo (desde que o número de votos a favor seja, naturalmente, superior ao número de votos contra). Em suma, e voltando ao referido artigo 116.º, n.º 3, da Constituição, as abstenções não relevam para o apuramento da maioria.

II. Por outro lado, ainda que haja uma rejeição da proposta de LOE, esta não determina (automaticamente) a demissão do Governo, pois não corresponde a nenhuma das causas de demissão previstas no artigo 195.º, n.º 1, da Constituição.
Poderá o Presidente da República vir a entender que a referida rejeição configura uma situação que põe em causa “o regular funcionamento das instituições democráticas”, nos termos do artigo 195.º, n.º 2, e por isso decretar a demissão do Governo. Ou poderá, ao invés (como sucedeu em 2021) optar por dissolver a Assembleia da República, assim convocando novas eleições e levando a que, com o início de uma nova legislatura, o autor daquela proposta de LOE entretanto rejeitada seja demitido. Trata-se de opções do Chefe de Estado, no quadro do seu poder moderador e de garante do regular funcionamento das instituições democráticas (artigo 120.º) – não de imposições constitucionais automáticas.

III. Finalmente, sendo a competência de aprovação da LOE da própria Assembleia – e exclusiva, nos termos do art.º 161.º, alínea g) – ainda que a iniciativa originária seja exclusiva do Governo, a Assembleia pode introduzir alterações à proposta de lei originária[2]. Já o Governo, pese embora a iniciativa exclusiva da própria LOE, não dispõe em caso algum de poder legislativo para a alterar (questão diferente é a da aprovação do decreto-lei de execução orçamental, ele próprio vinculado à LOE).

Note-se, ainda, que a chamada norma travão[3] não é naturalmente aplicável a estas alterações provenientes da própria Assembleia. Trata-se de um limite ao poder de iniciativa legislativa dos Deputados, sempre que da mesma possa resultar, direta ou indiretamente, um desequilíbrio negativo do OE no ano económico em curso. Assim, a “norma-travão” não se aplica a (i) iniciativas legislativas do próprio Governo, (ii) a iniciativas legislativas que aumentem a receita ou diminuam a despesa ou (iii)a iniciativas que produzam efeitos em outros anos económicos (que não aquele em curso). Como esclarecem Gomes Canotilho/Vital Moreira, “Por um lado, não está impedida a apresentação e a aprovação de propostas que envolvam aumentos de despesa ou diminuição das receitas públicas, desde que se trate de propostas de alteração à proposta do orçamento: a limitação do n.º 2 não se aplica à própria votação do orçamento, que, embora sendo da exclusiva iniciativa legislativa originária do Governo, pode ser aprovado com alterações.”[4]

Assim, durante a discussão da proposta de LOE, podem os Deputados apresentar “todas as propostas de alteração que entenderem, desde que respeitem os princípios e regras orçamentais, não se aplicando a chamada «norma-travão». Isto porque a Assembleia não está a exercer uma competência propriamente legislativa, mas, sim, uma competência política exclusiva sob a forma legislativa. A Assembleia fixa os limites máximos do conjunto de despesas e prevê o conjunto das adequadas receitas; os deputados não estão sujeitos a qualquer limitação nas suas propostas, porque discutem e votam a totalidade do Orçamento”[5].

Ou seja, sendo a função da norma travão a de impedir que haja iniciativas legislativas que, não sendo provenientes do Governo, aumentem as despesas ou diminuam as receitas previstas na LOE, o art.º 167.º, n.º 2 não é passível de ser aplicado ao procedimento de aprovação da própria LOE.

Veja-se a este respeito a síntese elaborada pelo Governo, requerente do pedido de fiscalização da sucessiva da constitucionalidade que deu origem ao acórdão n.º 545/2021[6]: “no que respeita à proposta de Lei do Orçamento do Estado que o Governo anualmente submete à Assembleia da República, os deputados e grupos parlamentares não se encontram limitados pela norma-travão (que apenas incide sobre o Orçamento em execução), podendo, livremente, à luz do princípio democrático-representativo que há muito pontifica em matéria tributária e creditícia, não só rejeitar no todo ou em parte a iniciativa do Governo, como alterar profundamente a sua proposta de lei, aditando, aumentando ou reduzindo as receitas e despesas nela inscritas, mesmo que isso implique a sua descaracterização”.

Não obstante, sendo amplo o poder de a Assembleia da República apresentar alterações à proposta de LOE, levantam-se também problemas e vulnerabilidades acrescidos, redundando num verdadeiro “lado oculto do orçamento”[7].  

Nota:

Conforme publicitado pela própria Assembleia da República (https://www.parlamento.pt/Paginas/2024/outubro/Orcamento-do-Estado-para-2025.aspx), a documentação e a tramitação do processo orçamental podem ser acedidas através da p​ágina​ da Assembleia da República especialmente criada para o efeito: texto e mapas da proposta de lei de Orçamento do Estado, relatório que acompanha a iniciativa, calendário de apreciação​, docum​entos setoriais enviados pelo Governo para apoio às audições, legislação a alterar, propostas de alteração apresentadas pelos Deputados durante o debate, eventuais requerimentos de avocação da apreciação para Plenário e todos os registos de votações efetuadas, em Comissão e no Plenário.

Todas as reuniões em Plenário e na Comissão de Orçamento, Finanças e Administração Pública​ (COFAP) são públicas e podem igualmente ser acompanhadas através da emissão em direto do Canal Parlamento.


[1] Aprovada em anexo à Lei n.º 151/2015, de 11 de setembro, alterada pelas Leis n.ºs 2/2018, de 29 de janeiro, 37/2018, de 7 de agosto, 41/2020, de 18 de agosto, e 10-B/2022, de 28 de abril

[2] Cfr. a anotação ao artigo 106.º, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, edição revista, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 1118.

[3] Dispõe o artigo 167.º, n.º 2, da CRP que “Os Deputados, os grupos parlamentares, as Assembleias Legislativas das regiões autónomas e os grupos de cidadãos eleitores não podem apresentar projetos de lei, propostas de lei ou propostas de alteração que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento”.

[4] Cfr. Gomes Canotilho/Vital Moreira, anotação ao artigo 167.º, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume II, edição revista, Coimbra, Coimbra Editora, 2010, p. 349.

[5] Nas palavras do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 317/86, de 14 de janeiro, disponível em https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/317-663519. A jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre norma-travão é escassa (apenas 4 acórdãos: acórdão n.º 297/86, nº 317/86 e n.º 358/92 e mais recentemente o acórdão n.º 545/2021).

[6] Cfr. o referido acórdão n.º 545/2021, processo n.º 356/2021, de 14 de julho, disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20210545.html

[7] Sobre as propostas de alteração e o “lado oculto do Parlamento”, cfr. Jorge Gasalho, “Tendências, números e o “lado oculto do orçamento”, Comunicar, Boletim da Assembleia da República, Out_24, disponível em https://app.parlamento.pt/comunicar/V1/202410/98/artigos/art1.html.

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