I – Introdução
- Por meio do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 539/2024, foi declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma que resulta da interpretação conjugada dos artigos 11.º, n.º 1, e 25.º, n.º 4, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (‘CPTA’), segundo a qual, nos Tribunais Administrativos, quando seja demandado o Estado ou na mesma ação sejam demandados diversos ministérios, a representação do Estado pelo Ministério Público é uma possibilidade, sendo a citação dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado (JurisAPP), que assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo.
Trata-se de um acórdão proferido ao abrigo do artigo 281.º, n.º 3, da Constituição, de acordo com o qual
«O Tribunal Constitucional aprecia e declara ainda, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de qualquer norma, desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional ou ilegal em três casos concretos».
Neste texto, começar-se-á por dar nota do contexto normativo em que a questão de constitucionalidade surge (cfr. II), seguir-se-á uma breve análise dos processos pretextos – isto é, dos processos que correram perante os tribunais administrativos em que a questão de constitucionalidade foi suscitada e que deram origem aos acórdãos proferidos em sede de fiscalização concreta que, por sua vez, levaram à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral (cfr. III) –, far-se-á uma referência aos acórdãos proferidos em fiscalização concreta que o antecederam (cfr. IV) e, por fim, analisar-se-á brevemente o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 539/2024 (cfr. V).
II – O contexto normativo
- Este aresto vem na sequência da alteração ao CPTA, aprovada pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, que modificou regimes processuais no âmbito da jurisdição administrativa e tributária, procedendo a diversas alterações legislativas, entre as quais os referidos artigos 11.º, n.º 1, e 25.º, n.º 4. O primeiro inciso passou, depois desta alteração legislativa, a dispor que:
«Nos tribunais administrativos é obrigatória a constituição de mandatário, nos termos previstos no Código do Processo Civil, podendo as entidades públicas fazer-se patrocinar em todos os processos por advogado, solicitador ou licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público».
A redação anterior do referido artigo era a seguinte:
«Nos tribunais administrativos é obrigatória a constituição de mandatário, nos termos previstos no Código do Processo Civil, podendo as entidades públicas fazer-se patrocinar em todos os processos por advogado, solicitador ou licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, sem prejuízo da representação do Estado pelo Ministério Público».
Ou seja, a alteração legislativa, neste caso, consistiu na caracterização da representação do Estado pelo Ministério Público como “possibilidade” quando, na redação anterior, nada se dizia.
Já o teor do artigo 25.º, n.º 4, foi o seguinte:
«Quando seja demandado o Estado, ou na mesma ação sejam demandados diversos ministérios, a citação é dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, que assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo».
Trata-se de norma verdadeiramente inovatória, não existindo previamente no CPTA – ou noutro diploma extravagante – qualquer regime regulador da citação do Estado nem da citação de vários ministérios.
III – Os processos pretextos
- É público que, a partir do momento em que esta alteração legislativa entrou em vigor – em novembro de 2019 –, sofreu contestação generalizada (e organizada) por parte do Ministério Público[1]. A alegação da inconstitucionalidade da solução legislativa levou a (literalmente) centenas de decisões de questões incidentais dos Tribunais Administrativos e Fiscais, em processos de diversa natureza, sendo que uma pequena minoria dessas decisões recusou a aplicação dessas normas com fundamento em inconstitucionalidade e a esmagadora maioria dessas decisões aplicou essas normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o respetivo processo.
Das decisões positivas coube recurso imediato para o Tribunal Constitucional, obrigatório para o Ministério Público, ao abrigo dos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), e 72.º, n.º 1, alínea a), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (‘LOTC’).
Das decisões negativas coube recurso para os Tribunais Centrais Administrativos competentes, cujas decisões foram, contudo, unânimes no sentido da não inconstitucionalidade dos artigos 11.º, n.º 1, e 25.º, n.º 4, do CPTA[2].
Por sua vez, destas decisões o Ministério Público interpôs invariavelmente recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo, que todos indeferiu por considerar que “o problema jurídico suscitado [inconstitucionalidade das normas legais em referência] diz respeito a questões sobre as quais a sua intervenção não pode assegurar as finalidades inerentes à razão de ser do recurso excecional de revista, isto é, orientar, no âmbito da sua competência especializada, as decisões de casos semelhantes, na justa medida em que a última palavra sobre a questão caberia sempre ao Tribunal Constitucional [TC], para além de que para se lograr aceder ao TC não resulta necessária a interposição prévia de recurso de revista”[3].
E o Ministério Público daí foi interpondo, sucessivamente, recurso de constitucionalidade para o Tribunal Constitucional, desta feita ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LOTC.
IV – Os processos em fiscalização concreta
- O primeiro aresto em fiscalização concreta[4], resultante do recurso obrigatório de uma decisão positiva, foi o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 794/2022 (relatora Assunção Raimundo). Aí se decidiu, na 2.ª Secção do Tribunal, por maioria
«Julgar inconstitucional o disposto nos artigos 11.º, n.º 1, in fine e 25.º, n.º 4, ambos do CPTA, na redação conferida pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, quando interpretados no sentido de que nas ações instauradas contra o Estado Português nos Tribunais Administrativos o Ministério Público não é citado, ficando a sua intervenção processual dependente de solicitação pelo Centro de Competências Jurídicas do Estado, a quem compete coordenar essa intervenção, por violação do disposto no artigo 219.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa».
Isto, no essencial, porque deste último artigo da Constituição decorreria
«sensível inelasticidade no regime de representação do Estado pelo Ministério Público e que a Constituição se opõe, ao menos quando não se mostre justificada por outros interesses constitucionais de relevo, a medidas legislativas que importem o cerceamento da efetividade dessa representação ou da extensão por que pode ser exercida, designadamente através de condições ou causas de exclusão».
Este acórdão pôde contar com uma Declaração de Voto (Pedro Machete), que entendeu que o artigo 219.º, n.º 1, da Constituição consagra «um princípio – e não de uma regra –, relativo à representação do Estado em tribunal: o Ministério Público é o representante natural em juízo do Estado». E que, por isso, «este modo de representação do Estado não é constitucionalmente necessário nem constitui um exclusivo do Ministério Público. O mesmo corresponde, como mencionado, a um princípio que pode ser afastado pelo legislador democrático relativamente a determinados casos, por via de uma lei parlamentar ou de um decreto-lei autorizado». Mas – continua – a «natureza de princípio daquela disposição significa apenas que a mesma não se impõe em termos absolutos. Contudo, não afasta a necessidade de uma intervenção legislativa que, salvaguardando o princípio, regule os termos em que a cessação de tal representação pode ocorrer. Para esse efeito, a citação do Ministério Público nas ações contra o Estado é essencial, pois só desse modo é que fica garantido que a representação natural do Estado em juízo compete àquele órgão». Assim, conclui-se no Voto de Vencido que «a norma sindicada no presente processo, ao impedir a citação do Ministério Público e determinar a sua intervenção processual em representação do Estado apenas na sequência de solicitação transmitida pelo JurisAPP não é compatível com o aludido princípio da representação em juízo do Estado pelo Ministério Público consagrado no artigo 219.º, n.º 1, da Constituição».
E contou também com um Voto de Vencido (Mariana Canotilho), que afirma expressamente discordar « da leitura rígida do parâmetro constitucional e da afirmação de inelasticidade do regime de representação do Estado pelo Ministério Público. Longe de entender que a Constituição exige que se verifique um conflito de normas ou valores constitucionais para justificar a limitação dessa representação (como se de uma restrição a direitos fundamentais se tratasse), creio, pelo contrário, que a Lei Fundamental não impõe a (quase) exclusividade daquele órgão para assegurar a representação em juízo do Estado-Administração, em defesa dos seus interesses patrimoniais». Interpretando o artigo 219.º, n.º 1, da Constituição, como cometendo ao Ministério Público, em primeiro lugar, a «defesa da legalidade democrática» do Estado-coletividade, a «CRP não impõe ao legislador ordinário o dever de assegurar um reduto de representação obrigatória do Estado-Administração por aquele órgão. Por esta razão, entendo que a consagração constitucional da competência do Ministério Público para representar o Estado pode e dever ser lida como subsidiária, estando na disponibilidade do “representado” (o Estado-Administração) o seu concreto exercício».
- O segundo aresto, também resultante do recurso obrigatório de uma decisão positiva, foi o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 796/2022 (relator Ascensão Ramos). Segue, ipsis verbis, o primeiro Acórdão, partilhando os mesmos Voto de Vencido e Declaração de Voto.
- O terceiro aresto, ainda resultante do recurso obrigatório de uma decisão positiva, foi o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 857/2022 (relatora Joana Fernandes Costa)[5]. Tratando-se da primeira decisão da 3.ª Secção, o caminho argumentativo foi diferente, embora a conclusão tenha sido idêntica, tendo sido alcançado juízo de inconstitucionalidade por unanimidade, nos seguintes termos:
«Julgar inconstitucional, por violação do n.º 1 do artigo 219.º da Constituição, a norma que resulta da interpretação conjugada dos artigos 11.º, n.º 1, e 25.º, n.º 4, do Código de Processos nos Tribunais Administrativos (aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de fevereiro, na redação dada pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro), segundo a qual, nos tribunais administrativos, quando seja demandado o Estado ou na mesma ação sejam demandados diversos ministérios, a representação do Estado pelo Ministério Público é uma possibilidade, sendo a citação dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, que assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo».
Em termos de fundamentação, seguiu-se aqui, no essencial, a linha de raciocínio originalmente gizada na Declaração de Voto de Pedro Machete no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 794/2022, embora com um enquadramento bastante mais completo e uma justificação mais aprofundada. Assim, a um tempo, reconhece-se que
«esta competência do Ministério Público é aqui entendida como uma competência que se cinge à representação em juízo do Estado-Administração e que não exclui, em absoluto, a possibilidade de essa função ser exercida por outrem, que não o Ministério Público». Até porque «a mera atribuição a um determinado ente – aqui, o Ministério Público – de competência para exercício de uma certa função – no caso, a representação do Estado-Administração – não constitui, só por si, base suficiente para se afirmar uma reserva constitucional de competência a favor do ente de que se trate». Daí «não ser possível extrair da Constituição qualquer argumento que favoreça o entendimento de que a função cometida ao Ministério Público pelo inciso inicial do n.º 1 do artigo 219.º da Constituição integra o monopólio da representação em juízo do Estado, entendido como Estado-Administração, na defesa dos seus interesses patrimoniais».
E, a outro tempo, salienta-se que
«a atribuição ao Ministério Público da competência para a representação do Estado constituiria, no mínimo, um “indirizzo constitucional” que, no âmbito do contencioso administrativo, se imporia ao legislador ordinário enquanto exigência de não “esvaziar as funções de representação do Estado pelo Ministério Público sob pena de inconstitucionalidade material por violação do disposto no n.º 1 do artigo 219.º da Constituição”».
Concluindo-se que, neste caso,
«a norma que integra o objeto do presente recurso, ao estabelecer que a representação do Estado pelo Ministério Público constitui uma mera possibilidade, sendo a citação dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, atribui inequivocamente ao Governo do poder de, através de uma decisão discricionária – que se exprime através do envio da citação ao magistrado do Ministério Público competente –, optar ou não optar pela representação processual do Ministério Público. E fá-lo sem assegurar que este tenha intervenção principal nos processos em que estão em causa interesses que lhe cumpre defender, sem subordinar a decisão de constituir mandatário próprio à observância de quaisquer pressupostos, por mínimos que sejam, e sem estabelecer especiais exigências de fundamentação».
- O quarto aresto, já resultante de uma decisão negativa objeto de recurso para o Tribunal Central Administrativo – Norte cuja revista não foi admitida pelo Supremo Tribunal Administrativo, foi o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 876/2022 (relatora Assunção Raimundo). Sendo, de novo, da 2.ª Secção, seguiu também os fundamentos e parâmetros do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 794/2022, tendo-lhe sido apostos igualmente idênticos Voto de Vencido e Declaração de Voto.
- O quinto e o sexto arestos foram o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 92/2023 (Lino Ribeiro) e o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 98/2023 (Joana Fernandes Costa), ambos na sequência de recursos de Acórdãos do Tribunal Central Administrativo – Norte, embora sem interposição de recurso de revista. Sendo decisões da 3.ª Secção, seguiram a estrutura e os fundamentos do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 857/2022.
- O sétimo e o oitavo arestos foram o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 112/2023 (Ascensão Ramos) e o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 113/2023 (Ascensão Ramos), ambos na sequência de decisões negativas de que foi interposto recurso para o Tribunal Central Administrativo – Norte e dos quais, por sua vez, foi negada a revista para o Supremo Tribunal Administrativo. Sendo, mais uma vez, da 2.ª Secção, replicou também o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 794/2022 e respetivos Voto de Vencido e Declaração de Voto.
- Para além destes acórdãos, houve lugar ainda a duas decisões sumárias, emitidas ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 1, da LOTC: a Decisão Sumária n.º 15/2023 (relator Gonçalo de Almeida Ribeiro) e a Decisão Sumária n.º 16/2023 (relator Gonçalo de Almeida Ribeiro), ambas de recursos de decisões negativas objeto de recurso para o Tribunal Central Administrativo – Norte. Tratando-se de decisão da 3.ª Secção, tanto numa quanto noutra se acolheu a fundamentação do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 857/2022.
V – O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 539/2024
- O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 539/2024 tem origem num pedido de fiscalização sucessiva abstrata ao abrigo do artigo 82.º da LOTC. Nos termos deste artigo, aplicável aos processos de repetição de julgados previstos no artigo 281.º, n.º 3, da Constituição,
«Sempre que a mesma norma tiver sido julgada inconstitucional ou ilegal em três casos concretos, pode o Tribunal Constitucional, por iniciativa de qualquer dos seus juízes ou do Ministério Público, promover a organização de um processo com as cópias das correspondentes decisões, o qual é concluso ao Presidente, seguindo-se os termos do processo de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade ou da ilegalidade previstos na presente lei».
No caso, a iniciativa partiu do próprio Ministério Público. E, sendo o terceiro aresto – a partir do qual o processo de generalização pode ser requerido – de 21 de dezembro de 2022, este Acórdão foi prolatado pelo Tribunal Constitucional em pouco mais de um ano e meio, em 9 de julho de 2024.
Este aresto aproxima-se, na sua fundamentação, do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 857/2022 – para o qual, aliás, são feitas remissões frequentes. As suas principais conclusões são as seguintes:
«Ao dotar o Ministério Público da competência necessária para assegurar a representação em juízo do Estado-Administração, inciso inicial do n.º 1 do artigo 219.º da Constituição não reserva essa competência àquela magistratura, isto é, não impõe que tal representação só possa ser assegurada por aquela magistratura, nem determina que “a representação do Estado por outras entidades tenha que ser, sempre, uma representação concorrencial ou subsidiária da do Ministério Público”».
«Porém, na medida em que não deixa de atribuir tal função àquela magistratura, a Constituição também não coloca na livre disponibilidade do legislador ordinário a decisão sobre o se dessa representação, designadamente em termos que compreendam a possibilidade de este a cometer por inteiro ao Estado-Administração, enquanto ente representado. Sob pena de se negar qualquer eficácia normativa ao segmento inicial do n.º 1 do artigo 219.º da Constituição, a atribuição ao Ministério Público da competência para representar o Estado-Administração, apesar de não envolver uma reserva ou monopólio de representação, não pode deixar de ser entendida como um “indirizzo constitucional” […], que se impõe ao legislador ordinário enquanto exigência de reconhecimento àquela magistratura do estatuto legal, não de único ou exclusivo representante judiciário do Estado-Administração, mas, em todo o caso, do seu representante judiciário natural, designadamente no âmbito do contencioso administrativo». Assim, ao «atribuir ao Ministério Público competência para representar o Estado em juízo, a Constituição, se não reservou o exercício dessa função àquela magistratura, também não colocou tal exercício na integral dependência da vontade do ente representado, pelo menos em termos equivalentes à salvaguarda de modelo de pura representação voluntária. Com efeito, este determinaria que o Ministério Público não tivesse, nem em princípio, nem por regra, intervenção principal nos processos em que é demandado o Estado e estão em causa interesses cuja defesa lhe é legalmente cometida, o que esvaziaria de conteúdo útil, ou desmentiria até, a atribuição àquela magistratura da competência para “representar o Estado” – que, como atrás se viu […], a Constituição enuncia a título distinto e autónomo de todas as demais atribuições referidas no n.º 1 do artigo 219.º –, descaracterizando em definitivo o mandato constitucional atribuído ao Ministério Público, enquanto representante natural do Estado em juízo».
Em consequência de tudo isto, conclui-se que
«ao converter a representação do Estado pelo Ministério Público, quando demandado na ação, numa “mera possibilidade, sendo a citação seja dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, que assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo”, o legislador concretizou aquela atribuição em termos tais que não permitem continuar a reconhecer no Ministério Público, pelo menos com a densidade mínima necessária, a competência para “representar o Estado” que lhe é cometida pela Constituição. Nessa medida, a norma sindicada coloca o regime legal de representação do Estado no contencioso administrativo num ponto inconciliável com o n.º 1 do artigo 219.º da Constituição, devendo, por essa razão, ser declarada inconstitucional».
O Acórdão conta com uma Declaração de Voto (José Eduardo Figueiredo Dias, subscrita também por Ascensão Ramos), que reafirma a posição da maioria expressa no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 794/2022.
Por fim, o Acórdão ostenta ainda dois Votos de Vencido (Mariana Canotilho e Rui Guerra da Fonseca). O primeiro reproduz, no essencial, a posição expressa no Voto de Vencido aposto ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 794/2022. O segundo, por seu turno, sustenta que
«O disposto no artigo 219.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (“CRP”) constitui, a meu ver, uma norma de função […]. Neste sentido, representar o Estado, defender os interesses que a lei determinar, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a ação penal e defender a legalidade democrática são, essencialmente, atribuições do Ministério Público (doravante, “MP”), que carecem de tradução posterior em normas de competência. De resto, seria estranho incoerente que todos estes segmentos correspondessem a fins/funções/atribuições, e apenas o primeiro (representar o Estado) constituísse um segmento normativo específico de competência». Apesar disto, «e de nessa medida comportar uma ampla margem de conformação por parte do legislador, este não poderá esvaziá-la de conteúdo útil», tendo de «ser compaginada com outras constitucionalmente garantidas, se se verificar potencial de colisão ou interseção constitucionalmente problemática».
Tendo em conta este ponto de partida, reconhece-se que
«O Governo verá erodida a sua função como órgão superior da administração pública caso seja impedido de, ou lhe seja dificultado, levar as suas opções ao nível da função administrativa material até ao momento processual e de conformar a estratégia processual e os atos processuais nos litígios em que sejam demandados ministérios em defesa daquelas opções primeiras […]. A escolha da sua representação é também ela instrumental da função do Governo como órgão superior da administração pública».
E, aplicando este raciocínio à norma em análise, conclui-se que
«Os termos de citação constantes do artigo 25.º, n.º 4 do CPTA, e considerando a sua relação com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, são apenas um aspeto instrumental. Neste modo de ver, esses termos são apenas uma consequência da possibilidade que deve assistir ao Estado-administração (governamentalmente dependente) de escolher a sua representação, a partir da citação a um organismo governamental. É certo que, aqui, é o próprio legislador a fazer essa opção a priori, e não o Estado-administração (como era no projeto de 2015 de revisão do CPTA). Mas não faz sentido desvalorizar, para o que ora está em causa, que estamos perante um ato legislativo de iniciativa governamental (e que é, aliás, reversível). De resto, o CPTA continua a assegurar a intervenção do MP no contencioso administrativo (artigo 85.º), assim dando corpo neste âmbito ao complexo funcional emergente dos diversos segmentos do artigo 219.º, n.º 1 da CRP».
O que significa, em suma, que o Acórdão foi aprovado por uma larga maioria: 11 votos a favor e 2 votos contra.
[1] Foi até publicada uma minuta que terá servido de base a múltiplos incidentes de alegação de inconstitucionalidade, por violação do artigo 219.º, n.º 1, da Constituição, das normas ientificadas no corpo do texto por parte do Ministério Público – cfr. o referido texto em O. Machado, ‘Representação do Estado pelo Ministério Público nos tribunais administrativos – inconstitucionalidade material do conjunto formado pelas normas constantes do segmento final do n.º 1 do artigo 11.º e do n.º 4 do artigo 25.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, na redação conferida pela Lei n.º 118/2019’, Revista do Ministério Público, n.º 160, outubro-dezembro 2019, pp. 243-261 (as primeiras páginas estão disponíveis em pdf).
[2] Cfr., a título de mero exemplo, para assinalar apenas um (de entre os muitos arestos) de cada um dos tribunais de segunda instância, Acórdão do Tribunal Central Administrativo – Norte de 3 de julho de 2020, proc. n.º 902/19.0BEPNF-S1 (relatora Helena Mesquita Ribeiro), ou Acórdão do Tribunal Central Administrativo – Sul de 17 de julho de 2021, proc. n.º 59/21.7BEALM-S2 (relatora Catarina Vasconcelos).
[3] Cfr., para dar apenas um exemplo, de entre muitos, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 11 de março de 2021, proc. n.º 1240/19.4BEPNF-S1 (relator Carlos Carvalho).
[4] Para uma análise circunstanciada desta jurisprudência, cfr. P. Machete / C. Saavedra Pinto, ‘A representação do Estado pelo Ministério Público: breve resenha da jurisprudência constitucional sobre o tema’, in Aa.Vv., Estudos em homenagem à Professora Doutora Maria da Glória F. P. D. Garcia, Lisboa: UCP Editora, 2023.
[5] Para uma anotação a este aresto, globalmente concordante com o seu sentido, cfr. L. Sousa da Fábrica, ‘A representação judiciária do Estado pelo Ministério Público – Comentário ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 857/2022’, Revista Portuguesa de Direito Constitucional, n.º 3, 2023, pp. 179-213.