A modalidade de Isenção de Horário e o direito à desconexão ou o dever de abstenção de contacto

A modalidade de Isenção de Horário e o direito à desconexão ou o dever de abstenção de contacto

No regime jurídico português não existe expressamente consagrado o direito do trabalhador à desconexão, mas antes o Código do Trabalho (CT) impõe o dever de o empregador se abster de contactar o trabalhador no período de descanso deste, salvaguardadas as situações de força maior (artigo 199º-A, do CT). Este dever só veio a ser vertido em norma legal com as alterações e aditamentos introduzidos no CT português pela Lei nº 83/2021, de 6 de dezembro, que entrou em vigor em 01.01.2022, muito se devendo essa nova previsão aos circunstancialismos que conduziram ao maior recurso ao regime de trabalho à distância na sequência da pandemia resultante da doença do COVID 19. No entanto, o dever de abstenção de contacto assim consagrado abrange todas as modalidades de trabalho, que não apenas as referentes ao trabalho remoto, embora seja reforçado no âmbito do regime de teletrabalho ao ser qualificado como um dever especial do empregador (artigo 169º-B, nº 1, alínea b) do CT). Este dever (geral e especial) de abstenção de contacto por parte do empregador aplica-se tanto no setor privado como no setor público (administração pública, central, regional e local – cf. artigo 5º da Lei nº 83/2021).

No entanto, existem certas modalidades especiais de horário de trabalho relativamente às quais que se torna difícil conciliar o direito fundamental do trabalhador ao descanso e o dever de abstenção de contacto por parte do empregador. Uma delas é a da isenção de horário de trabalho (IHT), que se encontra regulada nos artigos 218º e 219º do CT, para os trabalhadores abrangidos pelo regime do contrato individual de trabalho, e nos artigos 117º e 118º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP), para os trabalhadores com vínculo de emprego público.

A título exemplificativo, mencione-se que, embora tanto um trabalhador sem isenção de horário, como um outro que goza de IHT, tenham definida uma remuneração base horária, o primeiro tem o direito de receber remuneração por horas extraordinárias ou prestação de trabalho suplementar, enquanto o segundo poderá ver-se privado de tal direito. Saliente-se, inclusive, que uma das modalidades previstas de IHT pode dispensar a sujeição aos limites máximos do período normal de trabalho (artigos 219º, nº 1, alínea a) do CT e 118º, nº 1, alínea a) da LTFP).

Na prática, constata-se que um teletrabalhador isento de horário de trabalho, por qualquer das razões acima enunciadas, vê a sua posição ainda mais enfraquecida em matéria de desconexão nos seus dias normais de trabalho: se um teletrabalhador, que tem um horário de trabalho diário das 9h às 17h, pode não atender um telefonema ou não responder a uma comunicação eletrónica que lhe foi dirigida pelo empregador já depois do termo daquele horário de trabalho, justificando-se com o seu direito ao descanso, a mesma atuação poderá não ser possível ou, pelo menos, não ser bem compreendida, pelo empregador relativamente a um trabalhador que goza de IHT.

A situação torna-se ainda mais difícil de equacionar no caso de trabalhadores titulares de cargos de direção ou chefia, atentas as missão e funções específicas de que estão incumbidos. Tal evidencia-se, particularmente, no que tange aos titulares de cargos dirigentes da Administração Pública, seja de nível superior ou intermédio, cujo estatuto lhes impõe o exercício de funções na modalidade de isenção de horário. Vejamos:

A LTFP, no nº 1 do seu artigo 117º, especifica que os trabalhadores titulares de cargos dirigentes (e também os que chefiem equipas multidisciplinares, características de serviços ou órgãos com estrutura matricial), gozam de isenção de horário, nos termos dos respetivos estatutos. Por seu turno, esclarece o artigo 13º do Estatuto do Pessoal Dirigente dos Serviços e Organismos da Administração Pública (EPDAP), aprovado pela Lei nº 2/204, de 15 de janeiro, na sua versão vigente, que “O pessoal dirigente está isento de horário de trabalho, não lhe sendo, por isso, devida qualquer remuneração por trabalho prestado fora do período normal de trabalho”.

Esta isenção de horário inerente ao exercício de funções em cargos de direção não dispensa esses dirigentes da observância do dever geral de assiduidade, nem do cumprimento da duração semanal de trabalho legalmente estabelecida (artigos 73º e 117º, nº. 3 da LTFP e 34º, corpo e alínea c) do EPDAP). Mais, a isenção de horário de que gozam implica a não sujeição aos limites máximos dos períodos normais de trabalho (o que decorre, a contrario, do estipulado nº 2 do artigo 117º, relacionado com o nº 5 do artigo 118º, ambos da LTFP), não lhes sendo devida qualquer remuneração suplementar por trabalho prestado para além do período normal de trabalho (artigo 117º, nº 5 da LTFP). Por outro lado, ao contrário dos demais trabalhadores que gozam de isenção de horário (nº 2 do artigo 117º da LTFP), os titulares de cargos dirigentes não beneficiam do direito aos dias de descanso semanal obrigatório, aos feriados obrigatórios e aos dias e meios dias de descanso complementar, nem ao descanso diário de onze horas consecutivos (artigos 118º, nº 5 e 123º, nº 2, da LTFP), conferido aos trabalhadores em geral. Têm, no entanto, direito a observar um período de descanso que permita a respetiva recuperação entre dois períodos diários de trabalho consecutivos (arts. 117º, nº 1 e 118º, nº 6 da LTFP).

No campo do direito laboral privado, o exercício de cargos de administração ou de direção na modalidade de isenção de horário depende de acordo escrito, não sendo inerente ope legis ao exercício de tais cargos (artigo 218º, nº 1, alínea a) do CT). Por outro lado, embora se estipule que a isenção de horário “não prejudica o direito a dia de descanso semanal, obrigatório ou complementar, a feriado ou a descanso diário”, constituindo contraordenação grave a violação desta norma (artigo 219º, nºs. 3 e 4, do CT), o período de descanso diário de, pelo menos, onze horas seguidas entre dois períodos diários de trabalho consecutivos, não é aplicável a trabalhador que ocupe cargo de administração ou de direção ou com poder de decisão autónomo, se o mesmo estiver isento de horário de trabalho, sem prejuízo de dever ser observado um período de descanso que permita a sua recuperação (artigo 214º, nºs 1, 2, alínea a) e 3, do CT. Relativamente a trabalhador com cargo de direção com essa modalidade de horário é também permitida a alteração do intervalo de descanso, definido no Código ou em instrumento de regulamentação coletiva de trabalho (artigo 213º, nºs 1, 2 e 5, do CT).

Seja como for, e se é certo que, como assinala avalizada doutrina constitucionalista, “Sem dúvida que a liberdade de empresa, conjugada com o princípio da autonomia privada, não exclui, em situações materialmente justificadas, a adopção de um sistema de isenção de horário, com a consequente limitação dos direitos fundamentais enunciados no artigo 59º, nº 1, alínea d)”, a verdade é  que “Em qualquer caso, em face do referido preceito constitucional, não é constitucionalmente admissível – consubstanciando uma restrição excessiva e constitucionalmente intolerável – que, por via do regime de isenção de horário, o trabalhador fique obrigado a trabalhar ininterruptamente ou assuma o dever de desempenhar, por via de regra, a actividade laboral durante doze ou catorze horas por dia (v. PEDRO ROMANO MARTINEZ, Direito do Trabalho …, cit., pág. 494).” (Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa, anotada, tomo I, pág. 606, Coimbra Editora, 2005).

Concluindo, embora com muito maior dificuldade de aplicação prática, temos que, também relativamente aos titulares de cargos de direção/gestão que exercem funções sujeitos à modalidade (legal ou derivada de acordo) de isenção de horário de trabalho, no âmbito do setor privado e do setor publico, há que respeitar o respetivo direito ao descanso, havendo, não obstante, de se encarar o dever de abstenção de contacto relativo aos mesmos com, se é que podemos assim aludir, com mais flexibilidade.