O Decreto-Lei n.º 48/2024, de 25 de julho, veio alterar o regime do direito de retenção de coisas imóveis, dando nova redação aos números 1 e 2 do artigo 759.º do Código Civil. Fê-lo, como resulta do preâmbulo do diploma, no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência, que «prevê a entrada em vigor de um “quadro jurídico revisto para a insolvência e resgate de empresas com vista a acelerar estes processos e adaptá-los ao paradigma ‘digital por definição’”, incluindo a revisão do regime de preferência do direito de retenção no confronto com a hipoteca, por alteração ao Código Civil».
Antes de nos debruçarmos sobre a alteração em concreto, podemos recordar que o direito de retenção é uma das garantias especiais das obrigações, regulada nos artigos 754.º a 761.º. Em geral, e seguindo os termos do artigo 754.º, o direito de retenção consiste na faculdade de o credor reter uma coisa que está obrigado a entregar ao seu devedor, quando o seu crédito resulte de despesas feitas por causa dessa coisa ou de danos por ela causados, podendo executar essa coisa e pagar-se à custa do seu valor. A retenção tem, por isso, uma dupla função: de garantia do crédito, e de coerção do devedor ao cumprimento.
O direito de retenção incide sobre coisas, sejam estas móveis ou imóveis. Essa nota é percetível desde logo na consagração geral do direito, mas também nos ditos casos especiais de direito de retenção (artigo 755.º) e na regulação específica da retenção conforme a natureza móvel ou imóvel da coisa retida (artigos 758.º e 759.º).
O direito de retenção é, em geral, uma causa legítima de preferência entre credores, por força do artigo 604.º, n.º 2. Constitui, como tal, uma exceção à par conditio creditorum, que permite ao credor-retentor executar a coisa retida e apropriar-se do produto da execução para satisfazer o seu crédito com prioridade perante os demais credores do devedor.
Destarte, uma das principais dificuldades de aplicação do regime do direito de retenção é saber como graduá-lo face às outras garantias das obrigações que incidam sobre a mesma coisa.
A alteração legislativa em análise tem relevância especificamente na graduação do direito de retenção sobre um bem imóvel.
A versão original do artigo 759.º rezava assim:
«1. Recaindo o direito de retenção sobre coisa imóvel, o respectivo titular, enquanto não entregar a coisa retida, tem a faculdade de a executar, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário, e de ser pago com preferência aos demais credores do devedor.
2. O direito de retenção prevalece neste caso sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente.
3. Até à entrega da coisa são aplicáveis, quanto aos direitos e obrigações do titular da retenção, as regras do penhor, com as necessárias adaptações.»
Após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 48/2024, o artigo 759.º conhece a seguinte redação:
«1. Recaindo o direito de retenção sobre coisa imóvel, o respetivo titular, enquanto não entregar a coisa retida, tem a faculdade de a executar, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário, e de, nos casos em que o crédito assegura o reembolso de despesas para a conservar ou aumentar o seu valor, ser pago com preferência aos demais credores do devedor.
2. Nos casos previstos na parte final do número anterior, o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente.
3. [inalterado]»
Na sua versão original, o artigo 759.º conferia ao retentor de coisa imóvel a faculdade de executar a coisa retida e de ser pago com preferência face aos demais credores, com exceção do credor titular de privilégio imobiliário especial (por força do artigo 751.º). O n.º 2 do preceito esclarecia cabalmente a prioridade do direito de retenção face à hipoteca, ainda que anteriormente constituída, em oposição ao previsto no artigo 686º. Existia, plenamente, um direito real de garantia a favor do retentor.
Fruto da recente alteração legislativa, o retentor continua a poder executar a coisa nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário, em seu benefício e dos demais credores.
Contudo, o seu direito foi desgraduado: a preferência no pagamento pelo valor da coisa imóvel executada apenas existe «nos casos em que o crédito assegura o reembolso de despesas para a conservar ou aumentar o seu valor». Apenas nesses casos o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, conforme resulta da nova redação do n.º 2 do artigo.
Note-se a restrição da prioridade a estes casos, face à regra geral de que o direito de retenção existe por créditos resultantes de despesas tidas com a coisa ou de danos causados pela coisa. O legislador restringiu, assim, a prioridade do direito de retenção sobre coisas imóveis apenas aos casos em que houve despesas com a conservação da coisa ou aumento do valor da coisa, ou seja, benfeitorias necessárias ou úteis realizadas pelo retentor sobre a coisa retida. Ficam de fora outros créditos do retentor, e, mais impressivamente, o crédito por danos causados pela coisa.
Tal alteração tem especial impacto na situação do retentor-promissário, que goza de um direito de retenção especial previsto no artigo 755.º, n.º 1, alínea f). Nesses casos, se o promissário não obtiver do promitente a celebração do contrato prometido (por incumprimento imputável ao promitente), mas já tiver obtido a transmissão da coisa objeto de tal contrato, então poderá retê-la e até executá-la, mas não será pago com preferência face aos demais credores.
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