- As questões
O recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de abril de 2023, relativo ao Processo n.º 12968/16.0T8LSB.L2.S1 (revista), em que foi relator o Conselheiro Oliveira Abreu e participaram os Conselheiros Nuno Pinto Oliveira e Ferreira Lopes, debruça-se sobre o tema da responsabilidade bancária, no quadro de uma apropriação indevida, por funcionário da instituição bancária, de quantias depositadas nessa instituição; este tema pressupõe, no caso, a resolução de uma questão de direito instrumental, que se prende com a determinação do sujeito atualmente obrigado à restituição dessas quantias ao cliente, considerando que a instituição bancária depositária foi objeto de medida de resolução decidida pelo Banco de Portugal.
- Os dados do caso
Desde 1996 que os autores, à data clientes do Banco Espírito Santo, S.A. (BES), realizaram, por diversas vezes, e por diversas formas, entregas de quantias monetárias na sucursal do BES na Suíça, em execução de contratos de depósito bancário. Para o efeito, contactaram, ao longo de anos, de forma preferencial, com um funcionário dessa sucursal.
Em 2013, os autores deixaram de conseguir contactar esse funcionário, tendo vindo a saber que parte das quantias entregues a esse funcionário não fora efetivamente entregue ao banco, apropriando-se este dessas quantias. Das quantias entregues pelos autores, foram emitidos documentos comprovativos e extratos com timbre do BES e da sucursal em questão.
Posteriormente, os autores exigiram ao BES a restituição das quantias entregues a esse funcionário e das quais este se havia apoderado, sem as entregar ao banco. Em negociações encetadas para o efeito, a pretensão dos autores foi reconhecida pelo BES, o qual, em março e abril de 2014, lhes propôs a restituição de uma parte dessas quantias.
Como é facto público, após a aplicação da medida de resolução do BES, por deliberação do Banco de Portugal, datada de 3 de agosto de 2014, a generalidade da atividade e do património do BES foi transferida, de forma imediata e definitiva, para o Novo Banco (NB), enquanto banco de transição. Por essa razão, as negociações acima referidas passaram a decorrer entre os autores e o NB.
Em outubro de 2014, os autores foram informados que o NB declinava qualquer responsabilidade, alegando, entre outras razões, que o referido funcionário nunca foi colaborador do NB, mas apenas do BES, e que o valor referente às quantias indevidamente embolsadas pelo funcionário não constava dos sistemas do BES e da respetiva contabilidade aquando da aplicação da medida de resolução.
- A decisão
A primeira parte da decisão do Supremo Tribunal de Justiça respeita ao reconhecimento de uma obrigação de restituição das quantias por parte da instituição bancária depositária.
Para tal, este Tribunal (i) qualificou como contrato de depósito bancário a situação em que os autores entregaram, por diversas vezes e por diversas formas, quantias ao funcionário do BES, (ii) considerou que o funcionário do BES atuou, na receção dessas quantias, na qualidade de representante do banco, e (iii) concluiu que, com a entrega das quantias ao funcionário, em execução de um contrato de depósito, o depositante perde o controlo sobre a gestão e destino das quantias entregues (“alheando-se, a partir de então, do seu uso e fruição”), deixando também de ser responsável pelo risco do seu extravio – o qual “passa a recair sobre o depositário até ao momento em que a restituição é exigível, e daí que, nesse interregno, a movimentação fraudulenta por terceiro, mormente um seu funcionário, de um depósito bancário, não é oponível ao depositante, independentemente de culpa do depositário nessa movimentação”, sendo, neste quadro, irrelevante a ausência de qualquer registo informático e registo contabilístico do BES sobre ao valor referente às quantias de que o funcionário indevidamente se apropriou.
Identificada uma obrigação de restituição das quantias entregues ao funcionário do BES, a segunda parte da decisão do Supremo Tribunal de Justiça focou-se na determinação da instituição bancária obrigada a essa restituição: se o BES, se o NB. Para responder a esta questão, importa ter presente o teor da deliberação do Banco de Portugal, de 3 de agosto de 2014, com as alterações e esclarecimentos introduzidos pelas deliberações de 11 de agosto de 2014 e de 29 de dezembro de 2015 (“Contingências” e “Perímetro”).
Em particular, debateu-se neste Tribunal a questão de saber se o dever de restituição, aos autores, das quantias por este entregues ao funcionário do BES era considerado, para efeitos da alínea (b) do Anexo 2 da deliberação de 3 de agosto um “passivo desconhecido”. Recorde-se que este Anexo (na sua versão 2C) se reporta aos “Ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão do Banco Espírito Santo objeto de transferência para o Novo Banco, SA”, e que, nos termos da referida alínea b), alguns “passivos” foram excluídos da transferência para o NB (os designados “Passivos Excluídos”), designadamente “quaisquer passivos ou elementos extrapatrimoniais do BES que, às 20:00 horas do dia 3 de agosto de 2014, fossem contingentes ou desconhecidos (incluindo responsabilidades litigiosas relativas ao contencioso pendente e responsabilidades ou contingências decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais), independentemente da sua natureza (fiscal, laboral, civil ou outra) e de se encontrarem ou não registadas na contabilidade do BES”.
Entendeu o Tribunal que o dever de restituição das quantias depositadas não era nem uma “contingência” (de verificação duvidosa ou incerta), nem um passivo “desconhecido” a 3 de agosto de 2014, por duas razões: (i) porque o dever de restituição se constituiu com a entrega, pelos autores, das quantias ao funcionário – entrega essa necessária e suficiente para a celebração do contrato de depósito, independentemente do desvio dessas quantias pelo funcionário, e (ii) porque o próprio BES já havia proposto aos autores assumir essa responsabilidade, ainda que mediante a entrega de um valor inferior à totalidade das quantias depositadas.
Por outro lado, perante a alegação, por parte do NB, da ausência de registos informáticos e contabilísticos sobre essas entregas, decidiu o Tribunal que “não será a circunstância formal e contabilística de os demonstrados depósitos, efetivamente celebrados com o depositário, Banco, não encontrarem reporte no registo administrativo documental da entidade bancária, que os coloca na lista de inexistentes, desconhecidos ou contingentes, na medida em que é a demonstração da entrega que determina a sua elegibilidade para pagamento”.
Decidiu, em suma, o Supremo Tribunal de Justiça, que este dever de restituição correspondia a um passivo não excluído e, como tal, transferido do BES para o NB. Coube, portanto, ao NB restituir as quantias peticionadas pelos autores.
- Notas finais
Esta decisão surge na linha jurisprudencial que já havia sido iniciada pelo Supremo Tribunal de Justiça com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30/04/2019, Processo n.º 17566/16.6T8LSB.L1.S2 (relator: Alexandre Reis), à qual se seguiram outros acórdãos em que se discutiram questões relativas à natureza “contingente” do passivo transferido do BES para o NB – vide também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14/01/2021, Processo n.º 17878/16.9T8LSB.L2.S1 (relator: Manuel Capelo), ou mesmo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31/03/2022, Processo n.º 22793/19.1T8LSB-B.L1.S1 (relator: João Cura Mariano).
O acórdão aqui analisado avança no tratamento jurisprudencial da matéria, ao clarificar que uma coisa é o dever de restituição das quantias depositadas emergente dos contratos de depósito celebrados entre os autores e a instituição bancária (uma obrigação contratual), outra, a responsabilidade civil do funcionário que se apropriou das quantias que lhe foram entregues, seja perante o banco, seja perante os clientes. Esta distinção é relevante porque, assim, o passivo transferido do BES para o NB não se reporta a qualquer indemnização, mas apenas ao cumprimento da obrigação de restituição que recai sobre o banco depositário – obrigação essa que, à falta de mais dados, não pode ser considerada como discutível, duvidosa ou contestável e, por isso, contingente ou desconhecida.
Ana Alves Leal