O n.º 5 do art.º 267.º da Constituição vem impor ao legislador a regulação do procedimento administrativo, que deve assegurar a racionalização de meios, por um lado, e a participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhes digam respeito, por outro. Esta participação dos interessados encontra-se assegurada no Código do Procedimento Administrativo, nomeadamente através da “audiência dos interessados”, ou ainda na Lei n.º 83/95, de 31 de agosto.
A doutrina portuguesa tem dedicado algumas páginas à discussão sobre a natureza da audiência prévia dos interessados no Código do Procedimento Administrativo, atenta a configuração do n.º 5 do art.º 267.º da Constituição, para alguns objetiva e de natureza organizatória, e para outros a fons et origo de um direito fundamental à participação (com posições distintas, Freitas do Amaral, Paulo Otero, Sérvulo Correia, Aroso de Almeida ou, na respetiva dissertação de mestrado, Pedro Machete, são alguns exemplos de autores que se debruçaram sobre o tema).
Como é sabido, o tema tem significado na medida em que no nosso direito administrativo a regra é a de que um ato administrativo inválido é anulável, sendo nulos apenas os atos para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade. E o CPA considera atos nulos aqueles que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental (al. d) do n.º 2 do art.º 161.º do CPA), razão pela qual a conclusão a que se chegue sobre a natureza da audiência dos interessados releva para a determinação da forma de invalidade – anulabilidade ou nulidade – com significado se pensarmos ainda nas hipóteses de exclusão do efeito anulatório, no regime da anulabilidade (n.º 5 do art.º 163.º do CPA).
Pois bem, em 2022 destacou-se na jurisprudência dos tribunais superiores uma decisão aparentemente inédita do Supremo Tribunal Administrativo (STA): trata-se do Acórdão proferido no proc. 03478/14.1BEPRT, de 07-04-2022, relat. Cristina Santos, no qual é entre o mais avançado que “A audiência prévia dos interessados definida no artº 100º CPA/91 (artº 121º CPA/2015) constitui uma sub-fase procedimental autónoma e corporiza uma formalidade absolutamente essencial, cuja omissão pura e simples gera a invalidade do acto administrativo que defina com efeitos constitutivos a situação jurídica do interessado, isto é, conforme disposto no artº 133º nº 2 d) CPA/91 (artº 161º nº 2 d) CPA/2015) determina a nulidade da decisão final do procedimento por violação do conteúdo essencial do direito de audiência, direito fundamental alicerçado no artº 267º nº 5 CRP..” Em causa, um ato através do qual a Recorrente nos autos havia sido notificada para proceder ao pagamento de determinada quantia pecuniária, por obras realizadas por município ao abrigo de estado de necessidade administrativa – qualificado como título executivo passível de execução fiscal por determinação legal. Sucede que no aresto não surge justificada a linha adotada: muito sumariamente, é referida a posição há muito defendida por Sérvulo Correia e, erroneamente, a posição de Paulo Otero, que não coincide com a mencionada no Acórdão (cfr. Paulo Otero, Direito do Procedimento Administrativo, Almedina, 2016, pp. 571 e ss). O acórdão merece, assim, destaque, pela singularidade da posição seguida, já não tanto pela densidade da fundamentação.
De qualquer modo, importa notar que, pese embora sem fundamentação coincidente, a linha da jurisprudência do STA vem sendo e permanece constante, no sentido de considerar que a preterição de audiência prévia não gera a nulidade do ato, mas a respetiva anulabilidade (mais recentemente, já em 2023 e com menção a diversas decisões anteriores, Acórdão proferido no proc. 01235/21.8BEPRT, de 23-03-2023, relat. M.ª do Céu Neves). Seja por não reconhecer no direito de audiência um direito fundamental, seja por entender que a preterição de audiência não constitui ofensa ao conteúdo essencial de um direito fundamental ou ainda por lhe reconhecer natureza meramente instrumental, face a direitos fundamentais substantivos.
Gonçalo Carrilho