O artigo 11º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP), aprovada pela Lei nº35/2014 de 20 de junho, consagra o princípio da “continuidade do exercício de funções públicas”, estabelecendo que “o exercício de funções ao abrigo de qualquer modalidade de vínculo de emprego público, em qualquer dos órgãos ou serviços a que a presente lei é aplicável, releva como exercício de funções públicas na carreira, na categoria ou na posição remuneratória, conforme os casos, quando os trabalhadores, mantendo aquele exercício de funções, mudem definitivamente de órgão ou serviço”.
Este principio que já colheu assento antecedente no artigo 84º da Lei nº 12-A/2008, de 27 de fevereiro (diploma que estabelecia os regimes de vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas e foi entretanto revogado, à exceção dos 88º a 115º, pela referida LTFP), comporta uma garantia geral de contagem de todo o tempo prestado ao serviço da Administração Pública e em qualquer cargo ou função pública por trabalhador detentor de um vínculo prévio de emprego público – independentemente da modalidade do respetivo vínculo ou do órgão ou serviço público recetor desta prestação – como exercício de funções públicas na respetiva carreira, na categoria ou posição remuneratória, “conforme os casos”.
Não pode deixar de se vincar a centralidade deste princípio na dinâmica da relação laboral pública e no quadro dos princípios de proteção socio laboral-associados ao emprego público. A continuidade do serviço público em qualquer modalidade do vinculo de emprego público – nomeação, contrato de trabalho por tempo indeterminado, contrato a termo resolutivo ou comissão de serviço – e em qualquer órgão ou serviço abrangido pela LTFP, releva na determinação da situação laboral atual do trabalhador como exercício de funções públicas, no pressuposto de que não há interrupção no exercício dessas funções e de que se mantém uma relação jurídica de emprego público.
Tal princípio é não só expressão do direito à segurança no emprego constante do artigo 53.º da Constituição, como também é tributário do direito de acesso a cargos públicos, em condições de igualdade e liberdade, plasmado no artigo 50.º da referida Lei fundamental, na dimensão que proíbe que o exercício transitório de cargo público possa afetar a estabilidade do seu emprego, da respetiva carreira profissional ou dos direitos, regalias e os benefícios sociais adquiridos na relação jurídica antecedente, designadamente, em matéria de antiguidade (n.º 2).
Ou seja, para que os referidos princípios constitucionais obtenham efetiva concretização, impõe-se que o tempo que é exercido em funções públicas conte, designadamente para efeitos de antiguidade, enquanto se configurar uma situação de continuidade da prestação funcional, o que também é postulado pelo princípio da unidade e da estabilidade da função pública.
Deste princípio resulta claramente que o legislador quis assegurar, enquanto houver continuidade da prestação de serviço público, a manutenção e a comunicabilidade dos efeitos jurídicos gerados no exercício das funções públicas cessantes, no contexto da nova relação de trabalho constituída com um outro órgão ou serviço, em função do carácter público das funções desempenhadas.
Deste modo, o trabalho continuadamente prestado a um ou mais empregadores públicos será, em regra, contabilizado como tempo de prestação de serviço público, ainda que ocorra com vínculos de emprego público, carreira, categoria ou remuneração diferentes ou tenha ocorrido sucessão na posição jurídica de empregador público onde o trabalhador se encontre a exercer a sua atividade a titulo definitivo.
Para tal é necessária a verificação de dois pressupostos: i) Não ocorra quebra ou interrupção funcional e ii) o empregador público sucedente se encontre abrangido direta ou indiretamente pela LTFP (vide, a este respeito, o artigo 25º da LTFP)
Quer isto dizer que a cessação das anteriores funções num determinado órgão ou serviço público, em principio, não constituirá vicissitude justificativa da atribuição das prestações compensatórias devidas nos termos gerais em razão da antiguidade em serviço público (vide artigo 245º do Código do Trabalho, aplicável ex vi artigo 4º da LTFP) se o mesmo trabalhador voltar a exercer, sem qualquer hiato temporal, novas funções públicas, recriando-se neste caso condições de continuidade funcional como se não tivesse ocorrido qualquer interrupção jurídica relevante
Assim sendo, os trabalhadores nesta situação mantêm o direito ao gozo dos direitos adquiridos e em formação, indissociáveis da contagem da antiguidade ao serviço da Administração Pública, permitindo-se, por exemplo, que um trabalhador detentor de vínculo de emprego público a termo resolutivo certo que entretanto passou a exercer funções, de modo ininterrupto, na modalidade de contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, possa contar todo o tempo de serviço anteriormente desempenhado.
Questão diferente prende-se com a projeção deste princípio no catálogo de direitos que assistem ao trabalhador público.
Note-se que o direito à contagem do tempo de serviço para efeitos de “antiguidade ao serviço da administração pública” está, a priori assegurado, designadamente, para efeitos de aposentação, reforma, aquisição do direito a férias ou atribuição de subsídio de Natal.
Porém, como sugere a redação do artigo 11º da LTFP, parte final, a contagem desse mesmo tempo de serviço para efeitos de carreira ou categoria dependerá do regime das carreiras e categorias que o trabalhador detiver ao longo desse tempo e das modalidades de vínculo de emprego público de que o mesmo for titular. O que quer dizer que o alcance desta regra de contagem, para estes particulares efeitos jurídicos, deverá ser apurado necessariamente em conjugação com o quadro legal aplicável à carreira e/ou categoria da qual o trabalhador seja titular.
Com efeito, note-se que no que respeita ao regime das carreiras apenas os trabalhadores com vínculo de emprego público por tempo indeterminado exercem as suas funções integrados em carreiras (artigo 79º, nº1 da LTFP).
Por exemplo, para efeitos de alteração do respetivo posicionamento remuneratório a titulo obrigatório ou por opção gestionária (artigos 156º a 158º da LTFP), alguma jurisprudência avalizada não considera admissível a contagem do tempo em que o trabalhador esteve vinculado mediante contrato a termo resolutivo, uma vez que o exercício de funções a coberto de um contrato deste tipo não é considerado como tendo sido prestado inserido em carreira/categoria, mas apenas transitoriamente, com fundamento numa das situações a que alude o artigo 57.º da LTFP.
Ou seja, o trabalhador com vinculo de emprego público a termo resolutivo está sujeito ao sistema de avaliação do desempenho nos termos gerais mas não poderá usufruir dos pontos obtidos no âmbito do sistema para alterar a respetiva posição remuneratória na medida em que não está abrangido pelas normas relativas a carreiras (artigo 56º, nº6 e artigo 6º da LTFP, sem prejuízo de poder beneficiar de prémios de desempenho se reunir os necessários requisitos legais e se encontre inscrito nos universos definidos a este respeito no artigo 67º da LTFP).
Neste sentido apontam as conclusões sumariadas no acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 14-10-2022 (Proc 00408/21.8BEPNF) que se transcrevem:
“III- A alteração de posicionamento remuneratório pressupõe a integração do trabalhador numa carreira, o que não ocorre na contratação a termo (Art.º 56.º, n.º 6 da LGTFP
.(….)
IV- Nas situações em que os trabalhadores contratados a termo venham a celebrar contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, apenas relevam para alteração do posicionamento remuneratório, as avaliações obtidas na situação jurídico-funcional de contratados por tempo indeterminado.”.
No referido aresto judicial, considerou o Tribunal, em suma, que no domínio do emprego público não existe norma jurídica que permita fazer relevar o tempo de trabalho prestado ao abrigo de contrato de trabalho a termo resolutivo para efeitos de reposicionamento remuneratório, após o ingresso na carreira com a celebração de um contrato de trabalho por tempo indeterminado em funções públicas, e que só a partir desse momento podem os trabalhadores considerar-se integrados numa carreira; como tal, abrangidos pelas normas referentes à alteração do posicionamento remuneratório.
Posição intermédia assumem Paulo Veiga e Moura e Cária Arrimar Moura em Comentários à LTFP, 1.º Vol., Coimbra Editora, 2014, p..131, em anotação ao artigo 11º, ao admitirem que, para efeitos de carreira, categoria ou posição remuneratória, o tempo prestado no mesmo ou em diferente órgão ou serviço ou em qualquer modalidade de vinculo de emprego público, apesar da mudança de serviço ou de vinculo, apenas poderá ser contabilizado quando o trabalhador se mantiver na mesma carreira, categoria ou posição remuneratória.
Este princípio geral, na sua vertente positiva, assume ainda outras projeções particulares legalmente previstas.
Por exemplo, ao nível da garantia legal de manutenção da qualidade de beneficiário do regime de proteção social convergente, relativamente a um trabalhador vinculado por contrato de trabalho em funções públicas, por ocasião da mudança de modalidade de vinculação, por força do disposto no artigo 15º, nº2, da Lei nº 4/2009, de 29 de janeiro, e da Lei nº 60/2005, de 29 de dezembro.
Ou ainda em caso de sucessão, sem interrupção temporal, dos vínculos jurídicos constituídos pelos membros dos gabinetes governamentais ao abrigo do Decreto-Lei nº 11/2012, de 20 de janeiro, por força da aplicação cotejada deste princípio de continuidade funcional com as garantias especificamente aplicáveis aos membros dos gabinetes nos termos do artigo 10.º e 14º do Decreto-Lei n.º 11/2012, na medida em que a subsequente designação para novo gabinete governamental permitirá comunicar para esta nova relação os efeitos anteriormente conservados: o tempo de permanência e os direitos não usufruídos no contexto da anterior designação.
Nota particular merece a situação dos membros dos gabinetes governamentais titulares de uma relação prévia de emprego privado, seja com entidade pública seja ainda com entidade do setor privado que exerçam funções públicas. Á primeira vista, dir-se-ia não ser possível assegurar a receção do princípio constante do artigo 11º da LTFP. Não só porque este princípio não encontra respaldo na disciplina do Código do Trabalho ou em legislação complementar nos seus exatos termos como tão pouco existe qualquer interligação normativa de complementaridade (subsidiariedade) da LTFP face ao regime do Código do Trabalho (inexiste qualquer remissão cruzada deste Código para a LTFP, sem prejuízo de esta Lei assumir a aplicação subsidiária do Código do Trabalho relativamente aos trabalhadores detentores de um vínculo de emprego público).
Apesar da falta de identidade, no seu todo, entre o regime de emprego público e o regime de emprego privado, consideramos que o princípio da continuidade entre as funções exercidas em sucessivas estruturas públicas poderá ser mobilizado na perspetiva da verificação de uma situação de não regulamentação merecedora de tutela jurídica. ainda aplicável, por analogia, aos membros de gabinete ministerial que forem titulares de um vínculo laboral originário de direito privado nos casos em que os mesmos venham a exercer, sem qualquer interregno temporal, novas funções em outro gabinete governamental; ou ainda quando exista previsão de norma legal que expressamente preveja e atribua relevância ao tempo de serviço prestado na relação de emprego originária, maxime através das garantias e regime subsidiário previstos, respetivamente, nos artigos 10.º e 14.º do Decreto-Lei n.º 11/2012 (cf. artigo 10.º, n.º 1, do Código Civil).
Outra expressão avulsa do princípio da continuidade do exercício de funções públicas radica nas situações de sucessão de empregador público, a qual pode ocorrer por várias causas imputáveis à entidade empregadora ou ao próprio trabalhador, podendo resultar ainda da extinção da pessoa coletiva, da fusão entre duas ou mais pessoas coletivas públicas, da reestruturação seguida de reafectação e integração de um trabalhador noutra pessoa coletiva pública ou, simplesmente, num processo de consolidação da mobilidade ou de um procedimento concursal destinado a preencher lugares por tempo indeterminado.
A título exemplificativo, avulta o regime especial de reafectação dos trabalhadores da equipa DIGESTO por motivo de reorganização do JURISAPP. Os trabalhadores necessários à prossecução das atribuições e competências transferidas para a Imprensa Nacional Casa da Moeda, INCM. S.A, sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, conservaram o regime aplicável ao vínculo de emprego público de que eram titulares à data da respetiva transição, tendo sido afetos, na entidade integradora, a um mapa de pessoal transitório, com postos de trabalho a extinguir quando vagar (artigo 156º, nºs 2, 3 e 5 do Decreto-Lei nº 10/2023, de 8 de fevereiro).
Com a integração destes trabalhadores na INCM, ocorreu uma situação modificativa da respetiva situação jurídico-laboral por motivo de mudança definitiva de entidade empregadora. A INCM, sucedendo na posição jurídica do anterior empregador público, ficou igualmente sujeita à aplicação da LTFP (cf. decorre da aplicação articulada do referido artigo 156º com o artigo 1º, nº6, da LTFP) enquanto a situação laboral destes trabalhadores continuar a ser regulada pela referida LTFP, prefigurando-se deste modo a continuidade da prestação de serviço público com o vinculo de emprego público por tempo indeterminado constituído por estes trabalhadores.
Por último, importa referir que o referido princípio de continuidade funcional não prejudica a previsão de disposições especiais que apenas permitam considerar a antiguidade ao serviço de um determinado órgão, serviço ou entidade pública, ou o tempo de serviço prestado na carreira, categoria e posição remuneratória anteriormente detidos ou ainda das que restrinjam a relevância do tempo de prestação de serviço público a determinados efeitos. Noutro plano, também não está prejudicada a previsão de norma legal que faça relevar a contagem do tempo prestado com vínculo a termo resolutivo. A este respeito, veja-se, por exemplo, o regime de contagem do tempo de serviço prestado por trabalhadores abrangidos pelo programa de regularização extraordinária dos vínculos precários (PREVPAP) constante do artigo 13º, nºs 1 e 3, da Lei nº 112/2017, de 29 de dezembro, e do artigo 9º do Decreto-Lei nº 34/2018, de 15 de maio.