Maus-tratos a animais de companhia – as questões constitucionais

Maus-tratos a animais de companhia – as questões constitucionais

A Lei 69/2014, de 29 de agosto, criminalizou os maus-tratos a animais de companhia, aditando um Título VI à Parte II do Código Penal. O regime aprovado (com as alterações entretanto introduzidas pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto) pune “quem, sem motivo legítimo, matar”, ou “infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia”, ou “quem, tendo o dever de guardar, vigiar ou assistir animal de companhia, o abandonar, pondo desse modo em perigo a sua alimentação e a prestação de cuidados que lhe são devidos”. Além disso, é definido como animal de companhia “qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia”, e registados no Sistema de Informação de Animais de Companhia, com exclusão de animais para fins de exploração agrícola, pecuária, agroindustrial, de atividades no âmbito de espetáculos comerciais.

A elevação a crime de práticas de maus tratos a animais de companhia é o resultado de uma longa e acesa discussão de natureza política. Do ponto de vista constitucional, contudo, a questão nunca cessou de ser discutida, tendo dado origem a acórdãos de desaplicação, por tribunais judiciais, de algumas destas normas. Também o Tribunal Constitucional julgou inconstitucionais algumas das normas incriminatórias contidas nestes artigos em sede de fiscalização concreta (cfr., Acórdãos n.os 867/2021, 781/2022, e Decisões Sumárias n.os 344/2022 e 772/2022, 786/2022, e 14/2023, todas da 3.ª Secção, e Acórdãos n.os 843/2022 e 9/2023, da 1.ª Secção).

As questões em causa nestes acórdãos podem ser, simplificadamente, reconduzidas a duas: a dignidade penal do bem jurídico protegido; e o princípio da legalidade, enquanto exigência de lei certa (tipicidade e determinabilidade da lei penal). A título brevemente explicativo destas questões, convém sublinhar que a Constituição da República Portuguesa não contém qualquer menção expressa à proteção dos animais, salvo enquanto elementos da natureza, o que suscita a questão da legitimidade da intervenção penal, enquanto forma mais gravosa da repressão do Estado; e que a Constituição inclui, enquanto garantias das liberdades individuais, uma exigência de que a punição seja precedida de uma norma que, prévia e de forma clara, tipifique os atos em causa como crime. Têm central relevância, nesta sede, os artigos 18.º, n.º 2, e 27.º da Constituição.

Em 2024, o Tribunal Constitucional veio, num acórdão proferido pelo Plenário, em sede de fiscalização abstrata, a não declarar a inconstitucionalidade da norma incriminatória contida no artigo 387.º do Código Penal (Acórdão n.º 70/2024).

O Tribunal reconheceu que há visões mais ortodoxas e outras mais flexíveis ou abertas quanto à existência de um bem jurídico protegido constitucionalmente que legitime a criação de um tipo penal para maus tratos a animais. Contudo, e na sequência de uma análise de direito comparado como forma de demonstração de uma evolução axiológica, concluiu que os bens jurídicos acautelados (a vida e a integridade física dos animais de companhia individualmente considerados) encontravam apoio na Constituição material, louvando-se na posição de que a proibição da crueldade sobre animais constitui uma justa exigência moral e de bem-estar numa sociedade democrática. Concluiu assim que não havia objeções à admissibilidade da norma penal por falta de bem jurídico protegido.

No que toca às exigências de determinabilidade, debruçou-se o Tribunal sobre a alegação de que a ação (“infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos”) e o objeto (“qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos […], para seu entretenimento e companhia”) do tipo penal em causa não são suficientemente especificados. Quanto a este ponto, o Tribunal socorreu-se de jurisprudência anterior sobre expressões utilizadas noutras disposições penais (e.g., “utilização de meio insidioso”, na qualificação do crime de homicídio, ou “maus tratos físicos e psíquicos”, no crime de violência doméstica) para justificar que a noção de “maus tratos”, em geral, não é aberta de forma a que um destinatário normal não compreenda o que nela está contida, ou seja, quais são as ações que correspondem à conduta proibida, concluindo que é um conceito indeterminado, mas determinável na sua aplicação num caso concreto, e por isso compatível com o princípio da legalidade. Identicamente, entendeu que a condição “sem um motivo legítimo” não é mais genérica do que outras causas de justificação e que o conceito de “animal de companhia” não é essencialmente indeterminado, sendo de fácil apreensão pelos destinatários, acrescentando ainda que o facto de poder haver dúvidas de interpretação em casos de fronteira, tal como sucede nos demais crimes tipificados no ordenamento jurídico nacional, não torna a norma indeterminada

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