Caso julgado e fiscalização da constitucionalidade

Caso julgado e fiscalização da constitucionalidade

Tendo sido prolatado no passado dia 2 de abril o acórdão n.º 262/2024 do Tribunal Constitucional, a escolha do mesmo para objeto da presente publicação reside não tanto no objeto do pedido ou na questão de inconstitucionalidade aí suscitada, mas antes na “questão prévia” apreciada pelo Tribunal: a extinção do poder de apreciação do Tribunal Constitucional em virtude de caso julgado material formado sobre prévia decisão de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.

Em síntese, o Tribunal Constitucional decidiu não tomar conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas impugnadas pela Provedora de Justiça (constantes dos artigos 11.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto Legislativo Regional n.º 14/2020/M que adaptou à Região Autónoma da Madeira a Lei n.º 45/2018, de 10 de agosto, e que estabeleceu o regime jurídico da atividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica (“TVDE”) – por inconstitucionalidade orgânica – e dos artigos 8.º e 9.º do Decreto Regulamentar Regional n.º l/2021/M, que o regulamentou – por inconstitucionalidade consequente), por considerar que sobre essas normas incidira já prévia pronúncia de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, com eficácia ex tunc.

De acordo com o preceituado no n.º 1 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa, as declarações de inconstitucionalidade em processos de fiscalização abstrata sucessiva gozam de força obrigatória geral, sendo a eliminação das normas inconstitucionais do ordenamento jurídico o seu efeito principal. Também decorre do n.º 1 do artigo 282.º que “a declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado”.

Sendo este o efeito principal, naturalmente que a declaração produzirá outros efeitos, onde se inclui, tratando-se de uma decisão jurisdicional, a força de caso julgado formal e material.

O caso julgado traduz-se, recorde-se, na insusceptibilidade de impugnação de uma decisão, decorrente do respetivo trânsito em julgado – cfr. os artigos 619.º, n.º 1, e 628.º, ambos do CPC.

Por sua vez, ao caso julgado material são atribuídas duas funções que, embora distintas, se complementam: uma função positiva (“autoridade do caso julgado”) e uma função negativa (“exceção do caso julgado”).

No entendimento do Tribunal Constitucional, no momento de apreciação do pedido já não vigoravam no ordenamento jurídico as normas alvo do pedido de fiscalização, pois já haviam sido declaradas inconstitucionais com força obrigatória geral e efeitos ex tunc – através do Acórdão n.º 68/2024, proferido no processo n.º 967/2022 – assim vinculando direta e automaticamente todas as entidades públicas e privadas, incluindo os restantes tribunais.

Como se explica que tenha chegado ao Tribunal Constitucional um pedido sobre normas já não vigentes no ordenamento jurídico?

Como o próprio tratou de esclarecer, esta é uma “situação anómala e invulgar”, decorrente da circunstância de o pedido ter dado entrada apenas em 24 de novembro de 2023, decorridos mais de 40 dias após a discussão do Memorando do Presidente apresentado no processo n.º 967/2022 e respetiva distribuição ao relator.

Ora, prévias declarações de inconstitucionalidade em processos de fiscalização sucessiva abstrata impedem o Tribunal Constitucional de conhecer ou de se pronunciar (novamente) sobre a questão, ficando precludida a possibilidade de nova apreciação judicial de inconstitucionalidade em sede de fiscalização abstrata sucessiva, «pela simples razão de que, por efeito de tal declaração, as normas são banidas do ordenamento jurídico, desaparecendo, por isso, a possibilidade de ser de novo fiscalizada a sua constitucionalidade» – como já afirmado, entre outros, pelo Acórdão n.º 452/95.

Situação diferente ocorreria caso o Tribunal se tivesse pronunciado anteriormente pela não inconstitucionalidade das normas impugnadas, podendo nessa situação pronunciar-se novamente sobre a mesma matéria.

Em síntese, o Tribunal Constitucional encontrava-se efetivamente impossibilitado de apreciar o mérito do pedido, em virtude da força vinculativa do caso julgado material; ou seja, com a declaração de inconstitucionalidade, não só o próprio objeto do pedido desapareceu da ordem jurídica, como a exceção de caso julgado implicou a extinção do poder de reapreciação do tribunal – mesmo sendo o Tribunal Constitucional.

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