Pressupostos de aplicação da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias – Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 6 de junho de 2024 (Processo nº 0741/23.4BELSB)

Pressupostos de aplicação da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias – Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 6 de junho de 2024 (Processo nº 0741/23.4BELSB)

O Supremo Tribunal Administrativo, em recurso de revista com julgamento ampliado a todos dos juízes da secção de contencioso administrativo, pronunciou-se recentemente sobre os pressupostos de utilização da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias (acórdão de 6 de junho de 2024, relativo ao Processo nº 0741/23.4BELSB).

Trata-se de uma decisão muito significativa, francamente doutrinal, que visa estabilizar algumas oscilações da jurisprudência administrativa.

O acórdão foi relatado pela Conselheira Helena Mesquita Ribeiro e teve votos de vencido da Conselheira Maria do Céu Neves, da Conselheira Susana Tavares da Silva e do Conselheiro Pedro Marchão Marques.

Estava em causa a adequação do meio intimação para proteção de direitos liberdades e garantias para reagir contra a conduta omissiva da Administração Pública perante um pedido de concessão de autorização de residência. O Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa indeferiu liminarmente o pedido de intimação, com fundamento na verificação da exceção dilatória inominada da falta de idoneidade do meio processual. O Tribunal Central Administrativo Sul, por sua vez, julgou improcedente o recurso de apelação, corroborando a argumentação acolhida na sentença recorrida.

Como é sabido, o nº 1 do artigo 109.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, condiciona a utilização do meio processual intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias à impossibilidade ou insuficiência, nas circunstâncias do caso, do decretamento provisório de uma providência cautelar para garantir o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia.

A este propósito, no que toca à obtenção de autorização de residência por parte de estrangeiros, o acórdão exprime a convicção que «[…] a urgência do Recorrente na obtenção de uma decisão não é uma urgência cautelar ou instrumental, tratando-se antes da urgência na obtenção de uma decisão principal de mérito. É que estando em jogo o exercício de direitos, liberdades e garantias fundamentais, formalmente reconhecidos pela CRP e por instrumentos de direito internacional ao cidadão estrangeiro mas cuja efetividade se encontra materialmente comprometida pela falta de decisão do pedido de autorização de residência formulado, a garantia do gozo de tais direitos por parte do cidadão estrangeiro não se compagina com uma tutela precária, num cenário que já é contingente para o mesmo […]».

E acrescenta «[…] a falta de tal título [autorização de residência] contende quer com um feixe alargado de direitos de índole pessoal, que serão reconduzíveis à tipologia de direitos, liberdades e garantias, quer com direitos económicos, sociais e culturais, como o direito ao trabalho ou à saúde, que são direitos fundamentais não integrados pela Constituição naquela primeira categoria, mas que quando coartados na sua dimensão mais essencial, ligada ao princípio da dignidade da pessoa humana e à própria liberdade individual, terão de ficar abrangidos pelo regime aplicável àqueles direitos, liberdades e garantias e logicamente pelo âmbito desta intimação».

Concluindo «Em suma, a urgência verificada na situação dos autos não é uma urgência cautelar, tratando-se antes de uma urgência na obtenção de decisão de mérito. Como tal, não deve considerar-se adequada ou bastante à defesa dos direitos fundamentais do Recorrente a mera obtenção de uma tutela cautelar, que é necessariamente instrumental, traduzida na atribuição de autorização de residência provisória, que a qualquer momento, pode cessar, não lhe conferindo um horizonte temporal mínimo de estabilidade e de previsibilidade em relação à duração da sua permanência regular em território português».

Os votos de vencido entendem

  • que o  acórdão considera que a intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias é um meio apto para a proteção de uma situação jurídica sem a qualificar jurídico-dogmaticamente como direito, liberdade e garantia determinada e pessoal e concretamente titulada;
  • que visando a intimação, no caso concreto, o cumprimento do dever de decisão administrativa, a factualidade apresentada não configura uma situação de especial urgência diretamente relacionada com a necessidade de assegurar o exercício, em tempo útil, de direitos, liberdades e garantias;
  • que existia meio adjetivo suscetível de tutelar de forma adequada e suficiente o direito em causa;
  • que o acórdão se afasta do necessário rigor legal na apreciação dos pressupostos normativos prescritos na lei para o uso da intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias, assumindo-se como uma decisão estratégica.

Parece-me manifesto que o Supremo Tribunal Administrativo privilegiou uma abordagem substantiva da função da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias em detrimento de uma abordagem meramente formal. Essa perspetiva encerra, naturalmente, um elemento intencional, fruto da constatação do caráter desarticulado da relação entre a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, a ação de condenação e a tutela cautelar.

Na situação atual, com a acumulação excessiva de pedidos de autorização de residência por decidir, a jurisprudência referida vem, naturalmente, colocar pressão adicional sobre a Administração Pública e sobre os próprios tribunais. A pressão resulta de preocupações atendíveis; vamos esperar que o sistema tenha capacidade para reagir positivamente.