O âmbito da reserva de competência legislativa parlamentar relativa à«organização e competência dos tribunais»

O âmbito da reserva de competência legislativa parlamentar relativa à«organização e competência dos tribunais»
  1. Pese embora conjuntivamente unidos na primeira parte da alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, os termos «organização» e «competência», quando referidos aos «tribunais», instanciam realidades materiais distintas: (i) à organização, isto é, à “matéria organizativa”, reconduzem-se, fundamentalmente, as intervenções legislativas através das quais se “cri[e]m, exting[a]m, fundem [ou] cind[a]m tribunais”; enquanto que (ii) à competência se reconduzem os casos em que o legislador se proponha a interferir “sobre as competências de cada tribunal, [r]eduzindo, ampliando ou modificando[-as]”[1]. Trata-se pois de uma reserva competencial de largo espectro. Mas o certo é que o seu âmbito não é tão abrangente quanto uma primeira leitura daquela previsão constitucional pode eventualmente  fazer crer.
  2. Em especial quanto à competência, e pese embora deva ser lida como incidindo sobre “toda a competência dos tribunais, incluindo as competências não jurisdicionais”, aquela previsão constitucional cobre apenas as “modificações de competência judiciária (competência material ou territorial) que não tenham carácter meramente processual”[2]. Isto é: na parte em que se refere à competência dos tribunais, a alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição pressupõe que esteja em causa uma intervenção legislativa que interfira direta e necessariamente com a definição e determinação da competência de dado tribunal ou dado conjunto de tribunais, e não apenas indireta ou acessoriamente, inscrevendo-se num domínio de regulação essencialmente processual. A jurisprudência constitucional portuguesa revela-se, também quanto a este ponto, bem estabilizada, ao sinalizar, paradigmaticamente, que “qualquer que seja o nível ou o grau de definição da competência dos tribunais reservado à Assembleia da República, seguramente que nele não entram as modificações da competência judiciária a que deva atribuir-se simples carácter processual”[3], traçando por conseguinte uma clara distinção entre “normas que direta ou autonomamente vêm dispor sobre a competência [e] normas que só consequencialmente com ela implicam”[4], isto é, entre “intervenções legislativas diretamente votadas à definição e determinação daquela competência e as que, visando outro objetivo, se inscrevem num domínio de regulamentação processual, e que acabam por interferir apenas indireta, acessória e necessariamente com o quadro ou a distribuição legal das incumbências e faculdades cometidas ou atribuídas [aos tribunais]”[5] ― premissa geral e distinção das quais o Tribunal Constitucional tem extraído, entre muitos outros, os seguintes corolários:

(i)    O de que “o Governo tem [q]ue estar munido de autorização legislativa para editar normas que alterem a distribuição de competências entre tribunais pertencentes a ordens judiciais diferentes, uma vez que só desse modo ele pode legislar sobre matérias da competência legislativa parlamentar delegável”[6];

(ii)   O de que “a necessidade de autorização legislativa apenas é exigível se ocorre modificação das regras de competência judiciária material, com natural reflexo na distribuição das matérias pelas diversas espécies de tribunais”[7];

(iii)  O de que “retirar a possibilidade de conhecer determinadas matérias a certos tribunais para a atribuir a outros é modificar a competência de tais órgãos, o que est[á] vedado ao Governo fazer no uso da sua competência legislativa própria”[8];

(iv)  O de que aquela reserva constitucional de competência abrange, “para além da definição das matérias cujo conhecimento cabe aos tribunais judiciais e a daquelas cujo conhecimento cabe aos tribunais administrativos e fiscais (…), a distribuição das matérias da competência dos tribunais judiciais pelos diferentes tribunais de competência genérica e de competência especializada ou específica”[9];

(v)   O de que “[se] inclui na reserva parlamentar a definição de toda a competência judiciária ratione materiae ― ou seja: a distribuição das matérias pelas diferentes espécies de tribunais dispostos horizontalmente, no mesmo plano, sem que, entre eles, intercedam relações de supra-ordenação e de subordinação”[10].

(vi)  O de que “norma[s] [sobre] tramitação processual”, isto é, que “se limit[e]m a regular a forma de processo”, “[n]ão se enquadra[m] na matéria de reserva relativa da Assembleia da República”[11];

(vii) Enfim, e com particular relevância para o caso agora em apreciação, o de que “nenhuma norma constitucional se divisa da qual resulte que se insere na competência reservada da Assembleia da República a enunciação e tipificação dos títulos executivos”[12].

  • Vale isto por dizer que da alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição não se pode senão extrair a conclusão de que, em matéria de “competência dos tribunais”, apenas carecem de autorização legislativa parlamentar as intervenções governamentais que se saldem (i) ou numa modificação direta de competências jurisdicionais já previamente definidas por ato legislativo, (ii) ou numa supressão dessas competências, (iii) ou ainda numa transferência dessas competências por entre diversas instâncias. Inequivocamente fora dessa norma de reserva de competência legislativa estão quaisquer intervenções legislativas que, pese embora possam, na prática, representar alguma interferência no quadro legal de competências jurisdicionais, se devam primacialmente a questões de índole essencialmente processual ― núcleo esse no qual se inclui, muito em particular, a definição normativa dos tipos e classes de títulos a que deva ser reconhecida força executiva.
  • Por outro lado, mas ainda quanto ao modo como se devem interpretar as cláusulas de atribuição de competência legislativa reservada à Assembleia da República, interessa igualmente ter presente, novamente na linha de uma consolidadíssima orientação do Tribunal Constitucional, que “o facto de o Governo aprovar atos normativos respeitantes a matérias inscritas no âmbito da reserva relativa de competência da Assembleia da República não determina, por si só e automaticamente, a invalidação das normas por vício de inconstitucionalidade orgânica”, isto porque “desde que se demonstre que tais normas não criaram um ordenamento diverso do então vigente, limitando-se a retomar e a reproduzir substancialmente o que já constava de textos legais anteriores emanados do órgão de soberania competente, [n]ão exist[e] invasão relevante da esfera de competência reservada”[13].
  • Significa isto, por outras palavras, que a eventual invasão das competências legislativas reservadas da Assembleia da República por parte do Governo apenas é constitucionalmente relevante se a intervenção deste último órgão se traduzir numa modificação do status quo normativo sobre a matéria em questão. Pelo contrário, se a intervenção legislativa governamental, não obstante se situar nessa esfera de competências reservadas, se limitar a regular a matéria em termos já consentidos pelo ordenamento vigente, não haverá qualquer inconstitucionalidade orgânica; e, por ser assim, intervenções legislativas governamentais desse tipo poderão ser levadas a cabo sem necessidade de autorização parlamentar.

José Duarte Coimbra


[1]     Cfr., para esta distinção, recentemente, o Acórdão n.º 636/2015 (Proc. n.º 434/15), de 9.12.2015.

[2]     Cfr. J. J. Gomes Canotilho/V. Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, II, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 332.

[3]     Cfr. o Acórdão n.º 404/87 (Proc. n.º 28/83), de 29.07.1987.

[4]     Cfr. o Acórdão n.º 329/89 (Proc. n.º 179/85), de 11.04.1989.

[5]     Cfr. o Acórdão n.º 224/2008 (Proc. n.º 1060/07), de 17.04.2008.

[6]     Cfr. o Acórdão n.º 268/97 (Proc. n.º 685/96), de 19.03.1997.

[7]     Cfr. o Acórdão n.º 114/00 (Proc. n.º 300/97), de 22.02.2000.

[8]     Cfr. o Acórdão n.º 72/90 (Proc. n.º 182/89), de 21.03.1990.

[9]     Cfr. o Acórdãos n.º 36/87 (Proc. n.º 193/86), de 3.02.1987.

[10]    Cfr. o Acórdão n.º 476/98 (Proc. n.º 244/97), de 1.07.1998.

[11]    Cfr., v.g., o Acórdão n.º 586/2009 (Proc. n.º 11/09), de 18.11.2009.

[12]    Cfr. o Acórdão n.º 376/96 (Proc. n.º 236/95), de 6.03.1996.

[13]    Cfr., v.g., o Acórdão n.º 859/2014 (Proc. n.º 380/14), de 10.12.2014.