As pessoas coletivas de utilidade pública administrativa e a Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Pública

As pessoas coletivas de utilidade pública administrativa e a Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Pública

1. Com raízes remotas no século XVI e próximas nas corporações administrativas do Código Administrativo de 1896, a categoria das pessoas coletivas de utilidade pública administrativa foi criada pelo Código Administrativo de 1936-1940 1. Eram essencialmente de dois tipos2 : (a) Pessoas de utilidade pública administrativa local; e (b) Pessoas de utilidade pública administrativa geral. As primeiras (a) tinham a sua sede no Código Administrativo e incluíam “as associações beneficentes ou humanitárias e os institutos de assistência ou educação, tais como hospitais, hospícios, asilos, casas pias, creches, lactários, albergues, dispensários, sanatórios, bibliotecas e estabelecimentos análogos, fundados por particulares, desde que umas e outros aproveitem em especial aos habitantes de determinada circunscrição e não sejam administrados pelo Estado ou por um corpo administrativo” (cfr. artigo 416.º do Código Administrativo). Eram associações de beneficência as que tinham “por objeto principal socorrer os pobres e indigentes, na infância, invalidez, doença ou velhice, bem como educá-los ou instruí-los”; eram associações humanitárias as que tinham “por objeto principal socorrer feridos, doentes ou náufragos, a extinção de incêndios ou qualquer outra forma de proteção desinteressada de vidas humanas e bens”, sendo-lhes equiparadas as que tinham “por objeto principal a proteção de animais”; eram institutos de utilidade local “as pessoas coletivas de utilidade pública administrativa constituídas por fundação de particulares mediante afetação de bens dispostos em vida ou por morte para prossecução de um fim de assistência ou de educação” (cfr., respetivamente, artigos 439.º, 441.º, 441.º § único e 444.º. do Código Administrativo). O regime que lhes era aplicável era manifestamente exorbitante, com vinculações jurídico-públicas evidentes. Avultavam, entre os aspetos relevantes, a sujeição a tutela governamental de tipo integrativo a priori e a posteriori, inspetivo e sancionatório (incluindo com possibilidade de dissolução dos órgãos sociais e de determinar a extinção da pessoa coletiva), sujeição ao controlo financeiro do Estado e à jurisdição do Tribunal de Contas, regime de definição dos quadros de pessoal e do provimento dos trabalhadores, isenção de certos tributos, tinham benefício da assistência judiciária, verificava-se reversão dos bens para o Estado em caso de extinção da pessoa coletiva e sujeição ao contencioso administrativo (cfr. artigos 418.º a 432.º do Código Administrativo)3. As segundas (b), por sua vez, compreendiam “as associações e as fundações que se [propusessem] fins de assistência – [fosse] esta educativa, hospitalar, de serviço social ou de outra espécie” 4– que exercessem a sua atividade a nível nacional ou regional. Em muitos casos, esta qualificação resultava de diploma legal que aprovava os seus estatutos ou reconhecia a sua personalidade jurídica. Correspondem às pessoas coletivas agora elencadas, precisamente, no Anexo IV da Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Pública (LQEUP). Não era evidente qual o regime que lhes era aplicável, exceto no que especificamente resultasse dos seus estatutos aprovados por diploma legal, que prevaleciam por força do princípio lex specialis derogat legi generali. Se alguma doutrina considerava ser-lhes aplicável o mesmo regime das pessoas coletivas de utilidade pública de âmbito local 5 , previsto no Código Administrativo, outros expoentes doutrinários discordam dessa conclusão 6. 2. Com a entrada em vigor da Constituição de 1976, colocou-se a questão de saber se subsistia a categoria das pessoas coletivas de utilidade pública administrativa local – questão cuja resposta afirmativa acabou por ser dominante 7. A questão relevava, entre outros motivos, porque o regime constante dos Títulos VIII e IX da Parte I do Código Administrativo nunca fora revogado. Sucede, contudo, que, com o passar dos anos, acabou por passar a ser uma verdadeira ficção: um caso de um regime sem sujeito. Efetivamente, com a aprovação do Estatuto das Instituições Privadas de Solidariedade Social pelo Decreto-Lei n.º 519-G/79, de 19 de dezembro – a que sucedeu, uns anos depois, o Estatuto das IPSS, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de fevereiro –, grande parte das entidades que antes eram consideradas pessoas coletivas de utilidade pública administrativa emancipou-se e passou a ter um regime próprio. A machadada final no âmbito subjetivo daquele regime acabou por ser dada pela aprovação do Regime Jurídico das Associações Humanitárias de Bombeiros, pela Lei n.º 32/2007, de 13 de agosto, que lhe subtraiu expressamente as entidades dedicadas ao “socorro de feridos, doentes ou náufragos, e a extinção de incêndios” (cfr. artigos 2.º, n.º 1, e 50.º, n.º 2, da referida lei, este último agora revogado pela Lei n.º 36/2021, de 1 de julho)8 . Mas mesmo o regime, ainda que sem sujeitos, não deixa de levantar problemas. A um tempo, com uma ingerência tão intensa na autonomia das pessoas coletivas privadas a ele sujeitas, verdadeiramente exorbitante, parece claro que praticamente todos os seus traços contendem com a liberdade de associação, protegida pelo artigo 46.º da Constituição, ao abrigo da qual são constituídas 9 . A outro tempo, com uma formulação entretanto ultrapassada, vários aspetos do regime colocam dificuldade de aplicação ao abrigo do direito atual; pensado para um paradigma diferente, muitas das categorias a que se refere deixaram de existir e/ou de fazer sentido.Com a revogação dos Títulos VIII e IX da Parte I do Código Administrativo pela Lei n.º 36/2021, de 14 de junho [cfr. artigo 19.º, alínea o)], a questão deixa de se colocar: o regime, que já não tinha sujeitos e que colocava questões de constitucionalidade e de aplicação prática, deixa definitivamente de vigorar. 3. Restam, então, as pessoas coletivas de utilidade pública administrativa geral – que correspondem, como se disse, às que foram listadas no Anexo IV à LQEUP. A estas acrescenta o n.º 1 do presente artigo, por precaução, “quaisquer outras pessoas coletivas que por lei sejam qualificadas como pessoas coletivas de utilidade pública administrativa”. Apesar de a listagem pretender ser exaustiva, o legislador não exclui que lhe possam ter tenha escapado algumas entidades, motivo pelo qual recorreu, cautelosamente, a esta fórmula abrangente. Idêntica conclusão se deverá aplicar a pessoas coletivas a quem os respetivos estatutos, sem qualificarem a natureza da pessoa, mandem aplicar os direitos e benefícios do estatuto de utilidade pública. Assim, também a elas se aplica o presente artigo.Convém, por fim, saber se também estão abrangidas por este artigo 31.º as pessoas coletivas cujos estatutos as qualifiquem como tendo utilidade pública tout court – i.e., sem referência a utilidade pública administrativa. Neste caso, seriam equacionáveis três alternativas: (a) Análise casuística para determinar se as normas estatutárias contêm um regime de utilidade pública administrativa ou de mera utilidade pública; (b) Aplicação do regime do artigo 31.º; (c) Aplicação do regime do artigo 28.º.A primeira solução (a) defende que é necessário dissecar o regime que resulta da lei como sendo aplicável à pessoa em concreto, verificando de que categoria de utilidade pública se aproxima mais: se da mera utilidade pública, se da utilidade pública administrativa (ou até se das IPSS). Assim, a análise do conteúdo substancial dos estatutos acabaria por ser o critério a seguir 10. Sucede, contudo, que deixou de existir, como se viu, um regime de utilidade pública administrativa qua tale. O que resta são os estatutos específicos de cada pessoa incluída no Anexo IV da LQEUP. Ora, para se encontrarem traços comuns, será necessário um trabalho, que se encontra por fazer, de análise dogmática dos diferentes modelos, reduzindo a sua pluralidade à unidade. E tendo em conta que tanto se incluem entre os sujeitos assim qualificados entidades tão diversas em tantos aspetos – como o Cofre de Previdência dos Funcionários e Agentes do Estado, a Universidade Católica Portuguesa, Fundação Museu Nacional Ferroviário Armando Ginestal Machado 11, a Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior 12, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa 13 ou a Cooperativa António Sérgio para a Economia Social 14 [cfr., respetivamente, alíneas e), k), r), u), x) e aa), do Anexo IV da LQEUP] –, esse trabalho não será simples. Trata-se de opções políticas que foram sendo feitas ao longo do tempo e que dificilmente estão guiadas por um critério verdadeiramente unificador. Crê-se, por isso, que se trata de um caminho inviável.Rejeita-se igualmente a aplicação do regime do artigo 31.º. A aplicação apenas dos direitos e benefícios do estatuto de utilidade pública deverá ser excecional e resultar dos casos especificamente previstos na lei. Este não é um deles.Considera-se, portanto, que a solução adequada passa pelo recurso ao artigo 28.º, que prescreve, com algumas adaptações que decorrem da atribuição legal do estauto, do regime in totum, incluindo não só direitos, mas também obrigações. 4. Qual o regime que lhes é aplicável às pessoas incluídas no Anexo IV da LQEUP? Em primeiro lugar, o que resulta dos seus estatutos – como decorre diretamente do princípio da especialidade. Em segundo lugar, os direitos e benefícios do estatuto de utilidade pública, constantes do artigo 11.º da LQEUP, como resulta deste artigo. Isto significa, assim, que há uma diferença entre o regime que resultava do Decreto-Lei n.º 460/77, de 7 de novembro, e o regime da LQEUP. Se naquele a aplicação do regime da utilidade pública a este tipo de pessoas era completa – aí se incluindo, portanto, as obrigações (cfr. artigos 1.º, n.º 2, e 14.º, n.º 2, do diploma citado) –, neste já não é assim. O regime é-lhes, portanto, mais benéfico. É duvidoso que esta alteração de regime se justifique.A salvaguarda final do n.º 1 do presente artigo significa que os direitos e benefícios resultantes do artigo 11.º da LQEUP cedem perante direitos e benefícios mais favoráveis resultantes dos estatutos de cada pessoa – o que representa também um corolário do princípio lex specialis. Mas determina igualmente que, no caso de os direitos resultantes do artigo 11.º da LQEUP serem mais benéficos do que os que constam das normas estatutárias correspondentes à pessoa coletiva privada em análise, prevalece a LQEUP – o que significa uma derrogação do princípio da especialidade em nome do tratamento mais favorável.

  1. Assim, , cfr. M. Caetano, Das fundações, Lisboa: Ática, 1962, pp. 109-115. ↩︎
  2. Cfr. M. Caetano, Manual de direito administrativo, I10, Coimbra: Almedina, 1973, pp. 399-403. Sobre esta distinção, cfr., com uma perspetiva não inteiramente concordante quanto ao regime aplicável, cfr. P. Gonçalves, Entidades privadas com poderes públicos, Coimbra: Almedina, 2005, pp. 516-524. ↩︎
  3. Para o recorte deste regime com maior pormenor, cfr. A. Salgado de Matos, ‘O conteúdo substancial dos estatutos de utilidade pública das pessoas coletivas de direito privado’, Direito & Política, n.º 1, 2012,’, pp. 36-38 (ainda que o faça em conjunto com o que resulta do Regime Jurídico das Associações Humanitárias de Bombeiros). A estes traços acrescenta M. Rebelo de Sousa, Lições de direito administrativo, I3, Lisboa: Lex, 1999, p. 415, embora sem referir com que base legal, a competência regulamentar, a competência para a prática de atos administrativos e a competência para celebrar contratos administrativos. ↩︎
  4. Cfr. M. Caetano, Manual, I10, p. 402. ↩︎
  5. Cfr. V. Moreira, Administração autónoma e associações públicas, Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 298;M. Caetano, Manual, I10, p. 403. ↩︎
  6. Cfr. P. Gonçalves, Entidades privadas, pp. 518-520 ↩︎
  7. Resumindo a referida controvérsia doutrinária, cfr. L. Lopes Martins, As instituições particulares de solidariedade social, Coimbra: Almedina, 2010, pp. 84-89; P. Gonçalves, Entidades privadas, pp. 516-517; V. Moreira, Administração autónoma, p. 297. ↩︎
  8. Não tem razão, por isso, A. Salgado de Matos, ‘O conteúdo substancial dos estatutos’, p. 28, quando afirma que “as associações humanitárias que tenham por objeto o socorro de náufragos ou a extinção de incêndios, pessoas coletivas de utilidade pública administrativa previstas no art. 441.º CA, não foram abrangidas no âmbito das instituições particulares de solidariedade social, pelo que continuam a ser pessoas coletivas de utilidade pública administrativa”. De resto, a relação de causalidade estabelecida tão-pouco colhe: apesar de não estarem incluídas no âmbito subjetivo do Estatuto das IPSS, isso não significa que continuem a dever ser consideradas pessoas coletivas de utilidade pública administrativa local, sujeitas ao Código Administrativo. Como, aliás, demonstra o citado Regime Jurídico das Associações Humanitárias de Bombeiros, que, como se referiu, abrange “socorro de feridos, doentes ou náufragos, e a extinção de incêndios” (cfr. artigo 2.º, n.º 1) e determina que “As disposições do Código Administrativo relativas às pessoas coletivas de utilidade pública administrativa não são aplicáveis às associações humanitárias de bombeiros” (cfr. artigo 50.º, n.º 2, revogado pela Lei n.º 36/2021, de 1 de julho). Por seu turno, não é inequívoca a posição de J. M. Sérvulo Correia / F. Paes Marques, Noções de direito administrativo, I2, Coimbra: Almedina, 2021, p. 547, que também referem associações humanitárias dedicadas ao socorro de náufragos ou à extinção de incêndios para afirmar a subsistência da categoria de pessoa coletiva de utilidade pública administrativa, embora adiante concedam que a categoria estará “praticamente, senão totalmente, vazia” (p. 549). ↩︎
  9. Cfr., também neste sentido, J. M. Sérvulo Correia / F. Paes Marques, Noções, I2, p. 549; V. Moreira, Administração autónoma, p. 297. Não referindo qualquer inconstitucionalidade na sua aplicação a pessoas coletivas privadas formadas ao abrigo da liberdade de associação e citando o regime como integralmente aplicável, cfr. A. Salgado de Matos, ‘O conteúdo substancial dos estatutos’, pp. 36-38; D. Freitas do Amaral, Curso de direito administrativo, I4, Coimbra: Almedina, 2015, p. 608. ↩︎
  10. É a posição de A. Salgado de Matos, ‘O conteúdo substancial dos estatutos’, pp. 39-41 ↩︎
  11. Sobre a Fundação Museu Nacional Ferroviário Armando Ginestal Machado, cfr. D. Soares Farinho, Fundações e interesse público, Coimbra: Almedina, 2014, pp. 596-599; para outras fundações com o mesmo estatuto, cfr. 577-612, 912-918. ↩︎
  12. Sobre a Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior, cfr. A. Salgado de Matos, ‘O conteúdo substancial dos estatutos’, pp. 41-45. ↩︎
  13. Sobre a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, cfr. P. Gonçalves, Entidades privadas, pp. 922-926; M. Rebelo de Sousa, ‘Os novos Estatutos da Santa Casa’, in J. Bacelar Gouveia (org.), Estudos de direito público. Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Lisboa: Santa Casa, 2003,pp. 43-98; J. C. Vieira de Andrade, ‘Os novos Estatutos da Santa Casa’, in J. Bacelar Gouveia (org.), Estudos de direito público, pp. 99-126. ↩︎
  14. Sobre a Cooperativa António Sérgio para a Economia Social, cfr. A. Couto de Olim, sub artigo 115.º, in M. E. Gomes Ramos / D. Meira (org.), Código Cooperativo anotado, Coimbra: Almedina, 2018, pp. 611-616. ↩︎