A “divulgação de doutrinas e filosofias de vida” por pessoas coletivas como impedimento à atribuição do estatuto de utilidade pública

A “divulgação de doutrinas e filosofias de vida” por pessoas coletivas como impedimento à atribuição do estatuto de utilidade pública

A atribuição do estatuto de utilidade pública a pessoas coletivas encontra-se atualmente regulada na Lei n.º 36/2021, de 14 de junho (Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Pública).

O artigo 4.º deste diploma estabelece um conjunto de requisitos de elegibilidade de uma determinada pessoa coletiva para a atribuição desse estatuto. Em traços gerais, esses requisitos respeitam aos fins prosseguidos pela pessoa coletiva, ao universo de sujeitos beneficiários da atuação da pessoa coletiva, e à cooperação desta com a administração.

No que concerne às áreas de atuação das pessoas coletivas candidatas ao estatuto, o artigo 4.º consagra simultaneamente uma delimitação positiva e uma delimitação negativa, com recurso a uma enumeração taxativa (e não meramente exemplificativa): a um tempo, no seu n.º 3, listam-se os setores em que as pessoas coletivas devem atuar para poder beneficiar do estatuto de utilidade pública; a outro tempo, no seu n.º 4, estabelece-se uma delimitação negativa desses setores, determinando‑se como causa suficiente de inelegibilidade da pessoa coletiva para a atribuição do estatuto a atuação desta, de forma predominante, mesmo que não exclusiva, nos seguintes setores: “políticopartidário, incluindo associações e movimentos políticos”, “sindical” e “religioso, de culto ou de crença, incluindo a divulgação de doutrinas e filosofias de vida”. São hipóteses cuja verificação constitui um impedimento à atribuição do estatuto de utilidade pública. Basta, para tal, que a pessoa coletiva exerça atividade nesses setores (i) de facto ou de direito (não é necessário existir inscrição estatutária correspondente), (ii) ainda que não exclusivamente, mas desde que a título predominante. Nestes casos, a entidade competente deverá indeferir liminarmente o pedido de atribuição do estatuto.

Este recorte dos setores de atividade da pessoa coletiva candidata ao estatuto corresponde a uma opção do legislador que é temporalmente situada – e, portanto, comprometida com uma determinada visão do que sejam, a esse tempo, as áreas de atividade geradoras de «utilidade pública». Este recorte é também a expressão de uma preocupação de ordem prática, surgida durante a vigência do regime anterior, que se prendia com a necessidade de clarificar em que consistia a “área de relevo social” em que a pessoa coletiva devia atuar para que o estatuto de utilidade pública lhe pudesse ser atribuído – era esta a expressão que constava do enunciado da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 460/77, de 7 de novembro. Em particular, a delimitação negativa operada pelo artigo 4.º, n.º 4, da Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Pública, teve a vantagem de pôr termo a um conjunto de disputas entre particulares e a administração sobre a «utilidade pública», para efeitos destes regimes, da atuação de pessoas coletivas em matérias de natureza política, sindical, e religiosa ou de culto.

O modelo taxativo que dá forma às delimitações positiva e negativa contidas no artigo 4.º, n.os 3 e 4, da Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Pública, não evita, contudo, que se indague da possibilidade de extensão dessa delimitação (positiva ou negativa) a setores análogos aos listados nesses preceitos.

Merece especial atenção a exclusão contida no artigo 4.º, n.º 4, da Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Pública, referente à “divulgação de doutrinas e filosofias de vida” por pessoas coletivas. Casos que têm testado esta exclusão dizem respeito a pessoas coletivas cuja atividade predominante ou exclusiva envolve o ensino ou a prática de yoga, reiki, meditação, feng shui, reflexologia, aromaterapia, ou, em geral, terapias naturais usualmente descritas como formas para que o ser humano alcance equilíbrio físico, emocional, mental e espiritual. Esta exclusão legal terá sido essencialmente orientada pela falta de cientificidade, à luz do conhecimento atual, dessas doutrinas ou filosofias.

Nestes casos, importa saber se, a montante, a atividade relevante prosseguida pela pessoa coletiva requerente do estatuto se subsume a alguma das áreas de incidência enumeradas no artigo 4.º, n.º 3, da Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Pública – por exemplo, à área do “desporto” (alínea b)) ou à área da “saúde” (alínea i)). Sendo esse o caso, a exclusão operada pelo n.º 4 do referido artigo não tem, à partida, aplicação.

Cabe ter presente que, com a enunciação dessas áreas, o legislador não forneceu qualquer definição das mesmas, nem do respetivo âmbito material. O intérprete-aplicador deve, por isso, procurar apoio na densificação dos conceitos que nomeiam essas áreas em dados extrassistemáticos – o que implica geralmente o recurso, em termos metodologicamente aceitáveis, a diplomas setoriais para essa densificação. Razão pela qual se afigura útil, neste contexto, o poder atribuído à entidade competente para solicitar pareceres adjuvantes – mas não vinculativos – a quaisquer entidades públicas ou privadas (artigo 17.º, n.º 4, da Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Pública), que a auxiliem na tarefa de compreensão da atividade prosseguida pela pessoa coletiva requerente e de subsunção da mesma a alguma das áreas enumeradas nos n.os 3 e 4 do artigo 4.º da Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Pública.

Estes problemas podem ser ilustrados com a hipótese em que uma associação dedicada à prática de yoga, meditação e terapias holísticas e à realização de retiros e outros eventos similares, dirigidos aos seus associados ou ao público em geral, requer o estatuto de utilidade pública. Caberia à entidade competente saber se existe disposição normativa específica que expressamente integre ou qualifique a prática destas atividades como modalidades desportivas ou como meios de promoção da saúde. Em caso de dúvida relevante, a emissão de pareceres adjuvantes pode ser solicitada – v.g., ao Instituto Português do Desporto e da Juventude, I.P. Pese embora a natureza não vinculativa destes pareceres, os mesmos poderão ser determinantes para sanar as dúvidas da entidade competente para a atribuição do estatuto.