Os fundamentos para o sequestro de concessões

Os fundamentos para o sequestro de concessões

1. Constituindo uma figura que se pode considerar histórica e prototípica da regulação dos contratos de concessão (de serviços ou de obras públicas)[1], o sequestro possibilita ao ente público um poder de «avocação» temporária do objeto da concessão, sempre que a mesma se encontre, total ou parcialmente, atual ou iminentemente, interrompida ou deficientemente executada por parte do concessionário. Isto é, está em pauta um “poder de a Administração concedente se substituir ao concessionário sempre que se verifique ou esteja iminente uma interrupção total ou parcial da gestão do serviço ou existam graves deficiências na sua organização, regularidade ou continuidade”[2]. Donde, num cenário em que seja acionado, o sequestro possibilita que a Administração “assum[a], diretamente ou através de terceiro, e a título transitório, a execução de prestações contratuais em falta, sendo suportados pelo cocontratante faltoso os encargos do desenvolvimento das atividades concedidas”[3]. Noutra formulação, o que o sequestro possibilita é, para a Administração, o “reassumir [d]o exercício das funções públicas concedidas, substituindo-se ao concessionário”[4].

A)       Enquadramento

2. Não há pois dúvidas de que, para além da sua congénita provisoriedade, o sequestro se prefigura:

    (i)    Por um lado, como um poder do contraente público funcionalizado a assegurar o princípio da continuidade dos serviços públicos[5], ao postular um cenário em que o contraente particular “abandona o exercício do poder público que lhe foi conferido pelo contrato administrativo, ou o gere mal”, caso em que a Administração “tem o direito — se considerar, à luz do interesse público, que essa é a melhor solução — de assumir para si mesma o exercício desse poder e as obrigações do particular relativamente ao contrato”[6];

    (ii)   Por outro, como um poder do contraente público de natureza sancionatória e coercitiva[7], não apenas por ter como pressuposto “uma interrupção devida a facto imputável ao concessionário [e] implica[r] uma privação temporária do direito do concessionário à gestão do serviço”[8], mas também por visar “obter a realização do contrato através de meios de constrangimento que visam ultrapassar os efeitos que resultam do incumprimento por parte do cocontratante”, concedendo-se deste modo ao concessionário “a chance de se colocar em posição de cumprir o contrato de concessão, exercendo de forma regular a atividade concedida”[9].

    B)    Fundamentos

    3. Tal como tradicionalmente previsto e regulado nas fontes legislativas e contratuais nacionais, o sequestro surge como um poder necessariamente pressuponente de um incumprimento — mais ou menos acentuado, mas que em geral se traduza na disrupção total ou parcial do serviço ou obra pública concedido/a — imputável ao concessionário. É dizer, pois, que “pressuposto do sequestro é a existência de incumprimento grave, efetivo ou iminente, de obrigações contratuais pelo concessionário”[10], sendo precisamente esse cenário de incumprimento que faculta a hipótese, de, mediante o sequestro, “o programa contratual se desenvolver por conta do cocontratante”[11], por via da imputação sobre o concessionário dos custos e encargos resultantes do desenvolvimento transitório das atividades integradas no objeto da concessão pelo concedente.

    4. Não é senão com este recorte que a figura surge prevista e regulada no Código dos Contratos Públicos, em particular no respetivo artigo 421.º. Pressupondo o “incumprimento grave pelo concessionário de obrigações contratuais, ou estando o mesmo iminente”, o que o sequestro habilita é que o concedente “tom[e] a seu cargo o desenvolvimento das atividades concedidas”. E, sem prejuízo do contratualmente estipulado, a lei avança hipóteses-padrão aptas a mobilizar o sequestro: “quando ocorra ou esteja iminente a cessação ou suspensão, total ou parcial, de atividades concedidas”; ou “quando se verifiquem perturbações ou deficiências graves na organização e regular desenvolvimento das atividades concedidas ou no estado geral das instalações e equipamentos que comprometam a continuidade ou a regularidade daquelas atividades ou a integridade e segurança de pessoas e bens”. Sendo que, para vir a ser efetivamente exercido, exige-se que “o concedente notifi[que] o concessionário para, no prazo que lhe for razoavelmente fixado, cumprir integralmente as suas obrigações e corrigir ou reparar as consequências dos seus atos, exceto tratando-se de uma violação não sanável”. Nos termos em que assim surge na lei portuguesa, o sequestro assume, sem dúvidas, o figurino e a função de «sequestro-sanção»; ou seja, trata-se de um poder de conformação contratual de reação a um cenário de incumprimento (grave) do concessionário.

    5. Equivale isto por dizer que, ao contrário de outros também típicos poderes de conformação unilateral ao dispor dos entes públicos na execução de contratos administrativos — paradigmaticamente, o ius variandi, ou poder de modificação unilateral —, a mobilização do sequestro não se pode bastar com a invocação de razões de mera oportunidade/conveniência, isto é, de “interesse público”, por mais prementes ou intensas que elas se prefigurem. Antes, o sequestro postula uma concreta situação de incumprimento, ou seja, de inexecução de prestações contratuais imputáveis ao cocontratante. Sem a alegação dessa situação de incumprimento, falha pois o primeiro e cimeiro requisito de que depende a mobilização do sequestro.

    6. Não se ignora contudo que, por inspiração em alguma doutrina francesa, se façam entre nós referências a uma distinta modalidade de sequestro, dito «sequestro puro», a apartar do (normal) sequestro-sanção. Ou seja, a casos em que o sequestro surge como uma “medida de urgência através da qual o concedente, diante de uma situação de impossibilidade temporária de cumprimento, assume diretamente a condução da atividade concedida e imputa ao concessionário os encargos ordinários que tenha de suportar”, tratando-se assim de uma medida de “step in temporário”, que “só pode ser determinado por acordo das partes, evita a resolução do contrato e assegura a continuidade da atividade contratada”[12]. Neste enquadramento, o sequestro poderia assim “verificar-se em situações de urgência que impliquem a retoma do serviço pela Administração, passando esta a geri-lo, por sua conta e já não por conta do concessionário”, caso em que surgiria como uma “medida de urgência, cuja legalidade não depende da expressa previsão contratual”[13].

    7. Sem consagração explícita no ordenamento jurídico português, torna-se contudo verdadeiramente difícil arquiteturar os termos e condições em que um sequestro deste tipo — já não sancionatório, mas visando reagir a uma situação de urgência — pode eventualmente vir a ser exercido pelas entidades públicas portuguesas. Seja como for, e mesmo que se admitisse que a sua mobilização pudesse não depender de previsão contratual, o que seguramente não parece de admitir é que ele seja determinado de forma unilateral pelo concedente. Donde, verdadeiramente, o que ele postula é um acordo entre as partes, em princípio com impacto modificativo sobre o respetivo contrato de concessão,com todas as consequências daí advenientes: entre outras, a sua necessária sujeição a visto prévio do TdContas na hipótese de daí resultar um agravamento dos respetivos encargos financeiros ou responsabilidades financeiras[14].


    [1]    Como muitos dos aspetos de regulação substantiva dos contratos administrativos acolhidos no ordenamento jurídico português, a figura parece ter origem francesa (mise sous séquestre). E como em tantas figuras do género, os seus contornos têm filiação essencialmente jurisprudencial, sem previsão legal de âmbito geral: basta ver que o atual Code de la comande publique, não obstante conter uma secção dedicada ao regime substantivo das concessões (artigos L. 3131-1 e ss.), a não contempla. Para enquadradoras referências gerais na doutrina francesa, no quadro do poder de sanção das entidades públicas no âmbito de contratos administrativos, cfr. J. Rivero, Direito Administrativo, Coimbra: Almedina, 1981, pp. 147 e 522; F. Brenet, ‘Le contrats administratifs’, in Traité de Droit Administratif, 2, Paris: Dalloz, 2011, pp. 245-246.

    [2]    Cfr. P. Costa Gonçalves, A Concessão de Serviços Públicos, Coimbra: Almedina, 1999, p. 253.

    [3]    Cfr. M. Rebelo de Sousa/A. Salgado de Matos, Contratos Públicos, 2.ª ed., Lisboa: Dom Quixote, 2009, pp. 158-159.

    [4]    Cfr. P. Otero, O Poder de Substituição em Direito Administrativo, I, Lisboa: Lex, 1995, p. 73.

    [5]    Cfr. P. Costa Gonçalves, A Concessão, p. 253; M. Rebelo de Sousa/A. Salgado de Matos, Contratos, p. 159; M. Assis Raimundo, Direito dos Contratos Públicos, 2, Lisboa: AAFDL, 2022, p. 312.

    [6]    Cfr. D. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2018, p. 537.

    [7]    Assinalando a natureza sancionatória, cfr. M. Caetano, Manual de Direito Administrativo, II, 9.ª ed., Coimbra: Almedina, 1972, pp. 1129-1130; D. Freitas do Amaral, Curso, p. 537; M. Rebelo de Sousa/A. Salgado de Matos, Contratos, p. 157; P. Matias Pereira, Os Poderes do Contraente Público no Código dos Contratos Públicos, Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p. 79; aditando a funcionalidade coercitiva subjacente, cfr. P. Costa Gonçalves, ‘Cumprimento e incumprimento do contrato administrativo’, in Estudos de Contratação Pública, I, Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 605; Idem, Direito dos Contratos Públicos, 1.ª ed., Coimbra: Almedina, 2015, p. 590; M.J. Estorninho, Curso de Direito dos Contratos Públicos, Coimbra: Almedina, 2012, p. 499.

    [8]    Cfr. P. Costa Gonçalves, A Concessão, p. 254.

    [9]    Cfr. P. Costa Gonçalves, ‘Cumprimento’, pp. 605-606; Idem, Direito, p. 590.

    [10]  Cfr. M. Rebelo de Sousa/A. Salgado de Matos, Contratos, p. 159.

    [11]  Cfr. P. Costa Gonçalves, ‘Cumprimento’, p. 606; Idem, Direito, p. 590.

    [12]  Cfr. P. Costa Gonçalves, ‘Gestão de contratos públicos em tempo de crise’, in Estudos de Contratação Pública, III, Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 37.

    [13]  Cfr. P. Costa Gonçalves, A Concessão, p. 254.

    [14]  Ex vi artigo 46.º/1, d) da LOPTdC.