A responsabilidade financeira e o Tribunal de Contas

A responsabilidade financeira e o Tribunal de Contas

1. Nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 214.º da Constituição, o Tribunal de Contas é o órgão supremo de fiscalização da legalidade das despesas públicas e de julgamento de contas que a lei mandar submeter-lhe, competindo-lhe, nomeadamente, efetivar a responsabilidade por infrações financeiras, nos termos da lei – a Lei de Organização e Processo junto do Tribunal de Contas (Lei n.º 98/97, de 26 de agosto, alvo de sucessivas alterações – “LOPTC”).

A efetivação de responsabilidade emergente de infrações financeiras tem lugar mediante processos de julgamento de contas e de responsabilidades financeiras. O processo de julgamento de contas visa efetivar as responsabilidades financeiras evidenciadas em relatórios de verificação externa de contas; já o processo de julgamento de responsabilidades financeiras tem como objetivo efetivar responsabilidades financeiras emergentes de factos evidenciados em relatórios das ações de controlo do Tribunal elaborados fora do processo de verificação externa de contas ou em relatórios dos órgãos de controlo interno (artigo 58.º da LOPTC). Os processos relativos à efetivação das responsabilidades financeiras têm natureza jurisdicional.

2. O Capítulo V da LOPTC prevê dois tipos de responsabilidade financeira: a responsabilidade reintegratória, regulada na Secção II (artigos 59.º a 64.º), e a responsabilidade sancionatória, regulada na Secção III (artigos 65.º a 68.º).

A responsabilidade financeira reintegratória verifica-se nos casos de alcance, desvio de dinheiros ou valores públicos e ainda de pagamentos indevidos (artigo 59.º, n.º 1, da LOPTC), bem como nos casos de prática, autorização ou sancionamento, com dolo ou culpa grave, que impliquem a não liquidação, cobrança ou entrega de receitas com violação de normas legais aplicáveis (artigo 60.º da LOPTC).

Já a responsabilidade sancionatória consiste na aplicação de multas pela prática culposa ou dolosa de certos factos previstos na lei – mais concretamente, os tipificados nos artigos 65.º e 66.º da LOPTC. A este respeito, o Tribunal Constitucional esclarece que o artigo 65.º, sob a epígrafe “Responsabilidades financeiras sancionatórias”, prevê a aplicação de multas para diversas infrações, praticadas com dolo ou negligência, em que “está diretamente em causa o incumprimento das regras relativas à legalidade e regularidade das receitas e das despesas públicas e à boa gestão financeira”. O artigo 66.º, sob a epígrafe “Outras infrações”, prevê no seu n.º 1 a aplicação de multas em situações em que “o comportamento sancionado não se traduz na violação daquele tipo de regras, mas sim no incumprimento de regras de natureza eminentemente processual” (Acórdão n.º 778/2014, de 12 de novembro – Proc. n.º 608/14).

3. Na leitura do Tribunal Constitucional, a responsabilidade financeira sancionatória não se reconduz necessariamente às categorias dos ilícitos penal, disciplinar ou contraordenacional, fazendo parte de um “tipo autónomo de responsabilidade sancionatória – a financeira” (Acórdão n.º 635/2011, de 20 de dezembro – Proc. n.º 548/10).

Já o Tribunal de Contas afirma que se trata de uma responsabilidade “delitual em sentido estrito”, que se aproxima “do Direito penal e do Direito disciplinar” por visar “punir uma infração a certos deveres (com exigências de prevenção geral e especial) e não ressarcir um dano” (Sentença n.º 2/2021, de 7 de outubro de 2021 – Proc. n.º 1/2021-JRF-SRATC). A este respeito, é de referir que ao regime substantivo da responsabilidade sancionatória se aplica, subsidiariamente, o disposto nos títulos I e II da parte geral do Código Penal (artigo 67.º, n.º 4, da LOPTC).

No que diz respeito à responsabilidade financeira reintegratória, o Tribunal Constitucional afirmou já que na sua efetivação “não está em causa o juízo sobre um ilícito sancionatório (…). Quando muito, poder-se-á falar de uma responsabilidade conexa, porventura análoga à obrigação de indemnizar as perdas e danos emergentes de ilícito penal, e que é regulada por lei diferente daquela que pune tal ilícito” (Acórdão n.º 127/2016, de 24 de fevereiro – Proc. n.º 756/15).

4. À luz da jurisprudência do Tribunal de Contas, os pressupostos da responsabilidade financeira sancionatória são (i) um comportamento (ação ou omissão, direta ou subsidiária) de um sujeito que tem a seu cargo a guarda ou a gestão de dinheiros ou outros valores públicos; (ii) a ilicitude desse comportamento, por inobservância e/ou violação de um dever de serviço normativamente fixado; (iii) a culpabilidade do agente da conduta, traduzida num juízo de censura, considerando a sua atitude interna.

Na responsabilidade reintegratória acrescem ainda (iv) o dano para o erário público efetivo, individualizável e economicamente avaliável, e (v) o nexo causal entre o comportamento e o dano (Sentença n.º 2/2021).

As responsabilidades reintegratória e sancionatória podem ser cumulativas, uma vez que a aplicação de multas não prejudica a efetivação da responsabilidade pelas reposições devidas, se for caso disso (artigo 65.º, n.º 6, da LOPTC).

Trata-se de responsabilidades individuais e pessoais, que recaem diretamente sobre o agente ou agentes das ações (artigos 61.º, n.º 1, 62.º, n.º 2 e 67.º, n.º 3, da LOPTC); verificados os respetivos pressupostos, poderá haver lugar a responsabilidade subsidiária (artigo 62.º, n.º 3, da LOPTC). Sendo vários os responsáveis financeiros pelas ações, a sua responsabilidade, tanto direta como subsidiária, será solidária (artigo 63.º).

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