Da substituição do gozo de férias por compensação financeira no regime do emprego público –  A propósito do Acórdão do TJUE de 18/01/2024, Processo C-218/22

Da substituição do gozo de férias por compensação financeira no regime do emprego público –  A propósito do Acórdão do TJUE de 18/01/2024, Processo C-218/22

No Acórdãode 18 de janeiro de 2024, proferido no Proc C-218/22, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) (Primeira Seção)  foi chamado a pronunciar-se sobre a compatibilidade com o direito da União Europeia de uma disposição da legislação italiana – concretamente, o artigo 5º, nº 8, do Decreto-Lei nº 95 que aprova Disposições Urgentes para a Revisão da Despesa Pública sem Alteração dos Serviços Prestados aos Cidadãos e Medidas de Reforço Patrimonial das Empresas do Setor Bancário – que proibia, salvo algumas exceções, a atribuição aos trabalhadores da Administração Pública de uma remuneração compensatória pelos dias de férias anuais não gozados antes do termo da respetiva relação de emprego, em caso de extinção voluntária deste vinculo.

Na esteira da ampla jurisprudência do mesmo Tribunal  firmada, entre outros, nos Acórdãos de 20 de julho de 2016 (Proc C-341/ 15), de 6 de novembro de 2018 (Proc C-684/16), de 25 de novembro de 2021 (Proc C-233/20), e de 22 de setembro de 2022 (Proc C-120/21)[1], veio o TJUE decidir que a legislação nacional que, por razões de contenção da despesa pública e de organização do empregador público, impede o pagamento ao trabalhador público de uma retribuição financeira pelos dias de férias anuais remuneradas adquiridas e não gozadas até à data da extinção da respetiva relação laboral, pelo facto de o mesmo ter cessado, por sua iniciativa, essa relação, introduz uma restrição que não respeita o conteúdo essencial deste direito  social à luz do princípio da proporcionalidade e dos artigos 7º, nºs 1 e 2 , da Diretiva 2003/88/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de novembro de 2003, (Diretiva) relativa a determinados aspetos da organização do tempo de trabalho, e 31º, nº 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (Carta), caso a entidade empregadora não esteja em posição de demonstrar que usou toda a diligência exigida para que o trabalhador estivesse efetivamente em posição de gozar as férias anuais remuneradas a que tinha direito.

Diversas premissas podem ser extraídas deste aresto judicial e da vasta linha jurisprudencial que o mesmo secunda e desenvolve:

  1. Á luz do princípio decorrente dos artigo 7º da Diretiva e do artigo 31º, nº2, da Carta, o direito adquirido a férias anuais remuneradas não se pode extinguir no termo do período de referência e/ou de um período de transferência previsto no direito nacional, quando o trabalhador não teve condições de gozar as suas férias;
  2. O direito a férias anuais remuneradas compreende igualmente o direito à obtenção de uma compensação financeira pelos dias de férias que não puderam ter sido gozadas até ao momento da cessação da relação de trabalho, sendo irrelevantes os fundamentos que ocasionaram a extinção do vínculo laboral;
  3. Ao prever que o período mínimo de férias anuais remuneradas vencidas não pode ser substituído por uma prestação pecuniária, exceto nos casos de cessação da relação de trabalho, o artigo 7º, nº2, da Diretiva visa garantir que o trabalhador possa beneficiar de repouso efetivo através da fruição in natura destas férias, contribuindo desta forma para a proteção eficaz da sua segurança e saúde no trabalho;
  4. Deste modo, a entidade empregadora deve garantir, de forma concreta e com total transparência, que o trabalhador esteja efetivamente em condições de gozar as suas férias anuais remuneradas, incentivando-o, se necessário formalmente, a fazê-lo e informando-o, de forma precisa e em tempo útil, de que, se não as gozar, serão perdidas no termo do período de referência ou de um período de reporte autorizado;
  5. Contudo, este princípio não se opõe à perda ou extinção  do direito no final de um período de referência ou de um período de reporte, desde que o trabalhador que perdeu o direito a férias anuais remuneradas com a cessação do respetivo vinculo, tenha tido efetivamente a possibilidade de exercer o direito que a Diretiva lhe confere mas não gozou as férias deliberadamente e com pleno conhecimento de causa das consequências suscetíveis de daí resultarem.

A indagação que se pretende realizar prende-se em saber de que modo se refletem ou não tais asserções na legislação nacional aplicável aos trabalhadores em regime de emprego público.

No ordenamento jurídico nacional o direito a um período de férias periódicas remuneradas em cada ano civil configura um direito fundamental de todos os trabalhadores  públicos e privados que encontra consagração constitucional no artigo 59º, nº1, alínea d), da Constituição, sendo o direito a férias dos trabalhadores com vínculo de emprego público disciplinado pelo Código do Trabalho, com as especificidades constantes dos artigos 126º e seguintes da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas  (LTFP)[2].

O desiderato proclamado para o referido direito – assegurar ao trabalhador as condições mínimas de disponibilidade pessoal, que lhe possibilitem a recuperação física e psíquica, a integração na vida familiar e participação social e cultural (artigo 237º, nº4, do Código do Trabalho, aplicável ex vi artigo 126º, nº 1, da LTFP)[3] -, justifica a natureza, em princípio, irrenunciável  deste direito, i.e, a impossibilidade de convolar o seu gozo efetivo por qualquer compensação pecuniária ou outra, ainda que por acordo do próprio trabalhador (artigo 237º, nº3, do Código do Trabalho).

A aparente indisponibilidade do direito a férias sofre, no entanto, diversos desvios em diferentes situações que permitem sua conversão em compensação patrimonial:

  1. Renúncia do trabalhador ao gozo dos dias de férias que excederem 20 dias úteis (ou a correspondente compensação no caso de findar no  ano de admissão)  sem que tal opção acarrete redução da respetiva retribuição e subsidio de férias  (artigo 238º nº5 do Código do Trabalho, ex vi artigo 126º, nº1 da LTFP) que cumula com a remuneração do trabalho prestado nesses dias;
  2. Por motivo de extinção do respetivo vínculo de emprego, caso em que o trabalhador tem direito a receber a remuneração correspondente ao período de férias vencido no inicio do ano e não gozado, a que acresce o subsidio de ferias respetivo, se não o tiver recebido, que cumula com a remuneração equivalente ao período de ferias proporcional ao tempo de serviço prestado até à data da cessação, bem como ao respetivo subsidio .(artigo 245º do nº1 e 3 do Código do Trabalho, aplicável por força do artigo 126º, nº1, da LTFP);
  3. Por impossibilidade total ou parcial  de o trabalhador desfrutar do direito a férias já vencido e não gozado no ano de suspensão do vínculo de emprego publico operada por motivo de impedimento prolongado respeitante ao trabalhador, situação que confere ao trabalhador direito á remuneração correspondente r respetivo subsídio (artigo 129º, nº1, da LTFP):
  4. Por motivo de cessação do vínculo laboral após o impedimento prolongado respeitante ao trabalhador, situação que garante o  direito à remuneração e ao subsídio correspondente ao tempo de serviço prestado no ano do início da suspensão (artigo 129º, nº4, da LTFP);
  5. Nos casos em que o empregador publico se opõe, de forma injustificada e culposa, ao gozo das férias, situação que confere direito a uma compensação pecuniária correspondente ao triplo do valor da remuneração associada ao período em falta que deve obrigatoriamente ser gozado até 30 de abril do ano civil seguinte (artigo 130º da LTFP ).

Conquanto não introduza limitações ou constrangimentos específicos que importem a extinção do direito a férias vencidas ou vincendas, nomeadamente por motivos respeitantes ao trabalhador, o direito nacional do emprego público apresenta maior abertura à conversão do gozo efetivo das férias em compensação económica que vai muito para além das situações de cessação  do vínculo laboral mencionadas no artigo 7º, nº2, da Diretiva.

Todavia, a possibilidade de convertibilidade do gozo deste direito em prestação pecuniária é balanceada por indícios claros da preferência pela fruição efetiva do direito às férias vencidas que permitem acautelar os limites e objetivos traçados na Diretiva 2003/88/CE.

Não só porque o recurso mais alargado à substituição financeira das férias não gozadas deve fundar-se ora numa situação de impossibilidade efetiva de fruição por circunstâncias objetivas ou por força de comportamento obstativo do empregador público, como a própria possibilidade de renúncia do trabalhador se reporta ao remanescente dos dias de férias que excederem o período mínimo de fruição acautelado pelo artigo 7º, nº1, da Diretiva.

Ainda assim, o legislador nacional cuidou de delinear diversas soluções que favorecem o gozo efetivo dos dias de férias vencidas antes da cessação da relação de emprego, por concertação dos interesses das partes, de que são exemplo o disposto nos artigos 127º nº3 e 129 nº3 da LTFP e o disposto nos artigos 240º, nºs 2 e 241º, nº5 do Código do Trabalho.


[1] Disponíveis em https://curia.europa.eu

[2] Diploma aprovado em anexo à Lei nº 35/2014, de 20 de junho.

[3] Cf. artigo 237º, nº4, do Código do Trabalho