1. Enquadramento
O atestado médico de incapacidade multiuso (AMIM), como a própria designação indica, consiste num documento emitido por uma junta médica que certifica o grau de incapacidade de que padece uma determinada pessoa singular, sendo a fixação desse grau determinante para o acesso, por essa pessoa, a medidas e benefícios legalmente e contratualmente previstos.
A emissão do AMIM encontra-se regulada no Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de outubro, diploma que estabelece o regime de avaliação de incapacidade das «pessoas com deficiência» para efeitos de acesso às medidas e benefícios previstos na lei[1]. O AMIM é emitido na sequência de um procedimento específico (artigos 3.º e 4.º), que se inicia com a apresentação de um requerimento de avaliação da incapacidade de uma dada pessoa com deficiência ao presidente do conselho de administração da ULS, E.P.E., da área da residência habitual dessa pessoa, devendo ser acompanhado de relatório médico e dos meios auxiliares de diagnóstico complementares que o fundamentam. A emissão do AMIM compete às juntas médicas de avaliação das incapacidades das pessoas com deficiência (JMAI)[2]. As JMAI são constituídas por médicos especialistas, integrando um presidente, dois vogais efetivos e dois suplentes (artigo 2.º, n.º 6)[3]. Finda a avaliação, que deverá obedecer ao disposto nos artigos 4.º e 4.º-A do referido diploma, o presidente da JMAI emite o AMIM por via informática, cujo modelo é aprovado por despacho do diretor-geral da Saúde e no qual se indica expressamente qual a percentagem de incapacidade do avaliado (artigos 4.º, n.º 2, e 4.º-B)[4].
Os AMIM podem ser utilizados para todos os fins legalmente previstos (sobretudo para benefícios sociais, económicos e fiscais), adquirindo uma função multiuso, devendo todas as entidades públicas ou privadas, perante quem sejam exibidos, devolvê-los aos interessados ou seus representantes após anotação de conformidade com o original, aposta em fotocópia simples (artigo 4.º, n.º 6).
2. Relevância do atestado médico de incapacidade multiuso nos contratos de seguro de vida, de acidentes pessoais e de saúde
Os AMIM assumem uma importância significativa nos contratos de seguro de vida, de acidentes pessoais e de saúde, que se encontram especialmente regulados nos artigos 183.º e ss. e 210.º e ss. do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de abril, diploma que estabelece o regime jurídico do contrato de seguro (RJCS). Em particular, quando estes contratos estão associados a contratos de crédito bancário para a aquisição ou construção de habitação própria permanente, secundária ou para arrendamento, cujo regime se encontra plasmado no Decreto-Lei n.º 74-A/2017, de 23 de junho.
O clausulado típico destes contratos de seguro inclui disposições que fazem depender a conformação do risco segurado da verificação de um determinado grau de incapacidade do tomador do seguro (o qual é, necessariamente, uma pessoa singular)[5]. São cláusulas pelas quais se acorda que o contrato de seguro abrangerá a cobertura do risco de «invalidez», causada por doença ou acidente, sendo frequente também, que nessas cláusulas se defina o que é, para os efeitos acordados, a «invalidez» coberta, a «doença» e o «acidente». No que respeita à «invalidez» relevante para a conformação do risco objeto do contrato, revela-nos a prática contratual que usualmente esta compreende apenas a invalidez absoluta e definitiva, verificável nas situações em que o tomador do seguro fique total e definitivamente incapacitado de exercer qualquer atividade remunerável e necessite de recorrer, de modo contínuo, à assistência de uma terceira pessoa para realizar atos normais da vida diária, não sendo possível prever qualquer melhoria, com base nos conhecimentos médicos à data. Nem sempre a definição de «invalidez» é contratualmente ancorada numa percentagem mínima de incapacidade; todavia, geralmente é nesses moldes quantitativos que se define – exclusivamente ou não – a «invalidez» relevante.
Normal é, de igual modo, que a invalidez que conforma o risco contratual careça, para tal, de uma verificação externa, por terceira entidade escolhida pelas partes. Quase sempre, essa verificação passa pela apresentação de atestado detalhado, emitido por médicos que tratam e/ou trataram a pessoa segura, indicando as circunstâncias, causas, início, natureza, evolução e provável duração do estado de invalidez, bem como pela apresentação de relatório circunstanciado sobre a atividade profissional exercida pela pessoa segura na data da ocorrência do estado de invalidez. É a esta luz que a apresentação do AMIM pela pessoa segura ao segurador assume relevância, enquanto prova do sinistro, com vista à cobertura do risco segurado.
Estando em causa um contrato de seguro de vida, de acidentes pessoais e de saúde, associado a um contrato de crédito bancário à habitação, a cobertura reclamada pelo tomador do seguro compreende geralmente o pagamento, à instituição bancária, do montante que lhe é devido pelo tomador do seguro, isolada ou conjuntamente com terceiro mutuário, ao abrigo do contrato de crédito à habitação entre eles celebrado, a título de obrigação de reembolso do capital mutuado e de obrigação de pagamento de juros.
3. O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2024, de 25 de junho
3.1. O caso
A factualidade subjacente ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2024, de 25 de junho (AUJ 8/2024) é coincidente com esta. Em traços gerais, o caso apresenta-se assim:
Dois mutuários casados, que haviam celebrado contrato de seguro de vida, acidentes pessoais e doença em associação a contrato de crédito à habitação, pediram judicialmente a condenação do segurador no pagamento dos montantes por eles devidos ao banco, ao abrigo do dito contrato de crédito entre eles celebrado.
Fundaram o seu pedido no facto de à mutuária ter sido reconhecida, através da emissão de AMIM, uma incapacidade absoluta e definitiva, por doença (espondilartropatia inflamatória com envolvimento axial e periférico e síndrome doloroso músculo-esquelético difuso no contexto de síndrome depressivo), traduzida numa incapacidade superior a 66,6 % – o que, no entendimento dos mutuários, integrava a cobertura do seguro nos termos contratualmente acordados e, por isso, tal incapacidade correspondia a sinistro que tornava exigível ao segurador o pagamento dos montantes devidos ao banco pelos mutuários desde a data da ocorrência desse sinistro.
Em primeira instância, a pedido do segurador, foi produzida prova pericial (perícia de avaliação do dano corporal em direito cível, pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P.). O relatório pericial, ao qual se seguiram esclarecimentos dos peritos intervenientes, concluiu em sentido parcialmente divergente do AMIM, por qualificar a incapacidade da mutuária como “permanente parcial” em vez de “total”. Não obstante, nesta sede, foi proferida decisão favorável aos mutuários, pela qual, entre outras decisões, o tribunal julgou verificado o sinistro que aportou à mutuária uma incapacidade absoluta e definitiva, traduzida numa incapacidade contratualmente relevante de 71%, desde 2009, condenando-se o segurador a reconhecê-lo e a proceder ao pagamento do capital seguro em dívida.
O segurador interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL). O TRL veio aditar um ponto à matéria de facto baseado no relatório pericial acima referido, por ser um meio de prova sujeito à livre apreciação do tribunal, e assentou no mesmo a decisão revogatória da sentença recorrida, uma vez que o contrato de seguro celebrado entre os mutuários e o segurador apenas elegia como sinistro relevante a invalidez absoluta e definitiva até aos 65 anos.
Em revista subsequente, o Supremo Tribunal de Justiça foi chamado a pronunciar-se em recurso interposto pelos mutuários, que peticionaram a revogação do acórdão do TRL na parte do aditamento do facto provado que foi a base da decisão de direito no que respeita à cobertura do seguro correspondente à situação de invalidez. Decidiu este tribunal que, tendo o acórdão recorrido optado por valorar, por decisão fundamentada, a perícia realizada pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P., em detrimento do AMIM, o TRL não infringiu qualquer norma de direito probatório material, estando vedado ao Supremo Tribunal de Justiça sindicar tal decisão sobre a matéria de facto.
A decisão do Supremo Tribunal de Justiça estribou-se, portanto, na aplicação dos artigos 674.º, n.º 3, 2.ª parte, e 682.º, n.º 2, 2.ª parte, do Código de Processo Civil.
3.2 A questão fundamental de direito objeto de uniformização
Não se conformando com a decisão do Supremo Tribunal de Justiça, os mutuários, detetando contradição entre esta decisão e acórdão proferido anteriormente pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, interpuseram recurso de uniformização de jurisprudência, que foi admitido.
A questão fundamental de direito objeto do recurso para uniformização de jurisprudência assentou em saber qual a natureza jurídica e a força probatória do AMIM, emitido por uma Administração Regional de Saúde – se uma prova assente em documento autêntico, com força probatória plena para todo o seu conteúdo; se uma prova com juízo (ainda que em parte) de carácter pericial, sujeita a livre apreciação do tribunal.
Importa notar que, a considerar-se que o AMIM constitui um documento autêntico, de acordo com o disposto no artigo 369.º do Código Civil, então, faz prova plena dos factos que ali se referem como sendo praticados pela autoridade ou oficial respetivo, assim como quanto aos factos que nele são atestados com base nas perceções da entidade documentadora, conforme dispõe o artigo 371.º do Código Civil, força probatória esta que só pode ser ilidida pela via da falsidade, nos termos do disposto no artigo 372.º, n.º 1, do Código Civil. Neste sentido, os factos quanto aos quais o AMIM faz prova plena não podem ser afastados por prova pericial (designadamente, perícias produzidas em juízo).
3.3 A decisão de uniformização
O Supremo Tribunal de Justiça reconheceu que o AMIM consiste (i) num documento, na aceção prevista no artigo 362.º do Código Civil, enquanto escrito que, por regra e enquanto “atestado”, exprime uma declaração de ciência, sob a forma de documento narrativo (narração de factos e descrição de uma situação), (ii) qualificado como documento autêntico, na medida em que, por um lado, é exarado de acordo com as prescrições legais de carácter formal (“formalidades legais”) e, por outro, provém de uma “autoridade pública nos limites da sua competência” (as JMAI). Esta autoridade pública é a entidade documentadora a que faz referência o artigo 371.º, n.º 1, do Código Civil. A força probatória do documento autêntico é determinada pelas regras desse artigo, nos termos acima enunciados.
Tendo por base este quadro normativo e, em particular, o do artigo 371.º do Código Civil, entendeu o Supremo Tribunal de Justiça que o AMIM, sendo um documento com forma, conteúdo e finalidade delimitados pela lei, no qual se afirma necessariamente o grau/ a percentagem de incapacidade do avaliado, e estando presumida a sua autenticidade, convoca e testa os dois tipos de força probatória documental inscritos nas várias normas desse artigo: “(i) por um lado, os factos que são praticados e percecionados (como ocorridos na sua presença ou de que se certificou ou podia certificar-se) pela autoridade pública-junta médica; (ii) por outro lado, os juízos pessoais, de índole técnica, sobre a avaliação da deficiência e o grau de incapacidade”.
Quanto a este último segmento, entendeu o Supremo Tribunal de Justiça que os factos relevantes para a realização da avaliação médica aferidora da incapacidade e para a definição do grau de incapacidade (através de uma percentagem numérica utilizando algarismos) não constituem factos diretamente praticados ou observáveis pela JMAI (ou seja, estão fora daquilo que se “pode atestar com base em perceções” da “entidade documentadora”, recorrendo à terminologia do artigo 371.º, n.º 1, do Código Civil). Afirmando, a este propósito, o seguinte:
“Urge distinguir entre os factos referidos no “atestado médico de incapacidade multiuso” que correspondem à outorga do documento-atestado (à emissão da própria declaração, com aquela forma e com aquele conteúdo) e à perceção factual direta do presidente (quem emite a declaração) e dos membros da “junta médica” (por exemplo, a identificação do processo, o local em que a avaliação médica da pessoa identificada nesse atestado foi realizada, os elementos de identificação da pessoa avaliada, o ou os “atestados” anteriormente realizados) – prova plena nos termos do art. 371.º, 1, 1.ª parte, do CCiv.;
e os factos constantes desse documento que decorrem da apreciação pelos mesmos membros da “junta médica” no âmbito da respetiva competência especializada, ou seja, dos factos decorrentes do diagnóstico (incluindo o tempo de referência para a situação de incapacidade) e da respetiva determinação de um grau de incapacidade, no uso de conhecimentos científicos e, assim sendo, juízos de ordem pessoal assentes num “convencimento lógico-dedutivo” (e decisório, como se viu) suscetível de ser contrariado ou infirmado.
De tal sorte que a força probatória material deste documento nesta segunda vertente não pode deixar de estar sujeita à regra do jogo da livre convicção judicial da prova imposta pelo art. 371.º, 1, 2.ª parte.”
Para sustentar este entendimento, esclareceu o Supremo Tribunal de Justiça que:
- a avaliação médica da incapacidade corresponde a um diagnóstico assente na aplicação de conhecimentos dos membros da JMAI à condição de saúde da pessoa analisada – sendo, portanto, uma resposta de sujeitos com “conhecimentos especiais que os julgadores não possuem“, isto é, sujeitos atuando como “peritos” para o efeito do disposto no artigo 388.º do Código Civil, o que conduz a que estas “respostas” sejam objeto de livre apreciação do julgador (artigo 389.º do Código Civil);
- a percentagem de incapacidade fixada corresponde à subsunção dos factos resultantes dessa avaliação a determinada tabela de referência e suas instruções (a acima aludida Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais).
Nestes termos, o AMIM é entendido como um “documento autêntico com narração vinculativa e juízo pessoal dispositivo da entidade documentadora“, conjugando-se e aplicando-se, para este resultado, o disposto nos artigos 371.º, n.º 1, 2.ª parte, e 389.º do Código Civil.
Em consequência, foi uniformizada jurisprudência nos seguintes termos:
O atestado médico de incapacidade multiuso, emitido para pessoas com deficiência de acordo com o Decreto-Lei n.º 202/96, de 21 de Outubro, é um documento autêntico, que, de acordo com o artigo 371.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 389.º, do Código Civil, faz prova plena dos factos praticados e percecionados pela “junta médica” (autoridade pública) competente e prova sujeita à livre apreciação do julgador quanto aos factos correspondentes às respostas de avaliação médica e de determinação da percentagem de incapacidade da pessoa avaliada.
3.4 Consequências
As consequências da uniformização de jurisprudência pelo Supremo Tribunal de Justiça são evidentes: o AMIM não faz prova plena quanto aos factos correspondentes às respostas de avaliação médica e de determinação da percentagem de incapacidade da pessoa avaliada, por estas assentarem em juízos pessoais, técnicos mas subjetivos, dos médicos especialistas membros da JMAI. Assim, essa avaliação é tida como prova pericial que pode ser contraditada por outra prova pericial, que seja validamente produzida, ficando, dessa forma, sujeita à “livre apreciação do julgador”.
Quer isto dizer que o AMIM é, quanto à avaliação e graduação da incapacidade, sindicável em juízo – seja essa sindicância em sentido favorável ou em sentido desfavorável aos tomadores de seguros cuja incapacidade é atestada pelo AMIM.
No caso, que é ilustrativo, mas que se adivinha com ampla ressonância na prática seguradora, a sindicância desfavoreceu os mutuários, em benefício da pretensão do segurador. Nada impede, porém, a verificação do cenário oposto: disputas entre o sujeito avaliado no AMIM e a JMAI ou terceiras entidades, públicas ou privadas, para quem um grau mínimo de incapacidade do sujeito é condição necessária ou suficiente para, nos termos legais e contratualmente aplicáveis, o acesso e gozo de certos benefícios, e em que esse sujeito se arrogue a um grau de incapacidade superior ao atestado.
3.5 Pontas soltas do AUJ 8/2024: o AMIM como ato administrativo e as convenções de prova
(i) A decisão de uniformização contida no AUJ 8/2024 é omissa quanto à natureza de ato administrativo do AMIM e quanto ao processo de natureza administrativa de sindicância da avaliação de incapacidade declarada no AMIM.
A avaliação da incapacidade é um ato administrativo, titulado pelo AMIM, que está sujeito a recurso necessário para o dirigente máximo do serviço, a apresentar no prazo de 30 dias (artigo 5.º, n.º 1). A tramitação do recurso obedece ao disposto no artigo 195.º do Código do Procedimento Administrativo, com a seguinte especificidade: o dirigente máximo do serviço poderá determinar a reavaliação por nova junta médica, integrada por um presidente e dois vogais, que não tenham participado na avaliação anterior, podendo um deles ser indicado pelo recorrente (artigo 5.º, n.º 2).
Da homologação da segunda avaliação pelo dirigente máximo cabe recurso contencioso, nos termos gerais (artigo 5.º, n.º 3).
Importa notar que os pareceres elaborados pelas JMAI e que sustentam a sua avaliação situam-se no domínio da discricionariedade técnica da Administração, não podendo, nesta sindicância judicial, o tribunal administrativo substituir-se aos peritos médicos, a não ser que se verifique um erro grosseiro ou manifesto, ou de desvio de poder no ato administrativo praticado. Salvo casos reservados a um conhecimento científico (extrajurídico) praticamente inacessível pelo julgador, o erro grosseiro é aquele que se pode captar pelo simples senso comum, como evidência, não carecendo de perícia técnica para se concluir pelo mesmo.
Quer isto dizer que, em impugnação judicial do AMIM, o tribunal, sob pena de violação do princípio da separação de poderes (artigo 3.º da Constituição), não pode constituir-se em segunda instância administrativa. A jurisprudência dos tribunais administrativos revela-nos também que, menos ainda, pode o tribunal fazer um exame mais exigente do que aquele que foi feito pela Administração, como seja através de prova pericial.
No caso versado no AUJ 8/2024 não estava em causa a impugnação contenciosa do AMIM enquanto ato administrativo. Os dados fornecidos não fazem suspeitar da falta de estabilidade do AMIM. Pelo que o problema do recurso a prova pericial e ao seu confronto com o AMIM não se coloca nestes exatos termos.
Esta conclusão não prejudica, todavia, que se indague de especiais cautelas no afastamento do AMIM por prova pericial produzida em juízo, em processo que corra nos tribunais judiciais. Parta-se da hipótese em que o AMIM e a prova pericial produzida apresentam declarações de ciência que são, entre si, incompatíveis (como sucede no caso julgado). O problema não é apenas o de a referida atividade avaliativa se integrar na reserva de administração, mas também o de a desconsideração do AMIM, enquanto ato administrativo emergente de uma relação jurídica administrativa, por confronto com perícia médica ad hoc, poder enviesadamente comprometer a reserva de jurisdição administrativa.
Uma argumentação mais detida deveria, pois, dar resposta a estas cautelas. Sobretudo quando ainda fosse oportuna a impugnação judicial do AMIM: o sujeito avaliado e os terceiros interessados ou lesados, como sucede com o segurador, têm legitimidade ativa para essa impugnação, nos termos do disposto na alínea a), do n.º 1 do artigo 55.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos.
Sendo o AMIM impugnado, seria questão prejudicial de processo em curso nos tribunais cíveis que tivesse por objeto litígio dessa natureza. Não sendo impugnado, e sendo essa impugnação possível, não se afasta, à partida, a mobilização do regime do abuso do direito para paralisação de pretensões que sustentem a desconsideração do AMIM com fundamento em perícia médica equivalente requerida e/ou produzida em juízo.
(ii) A decisão de uniformização contida no AUJ 8/2024 não vale para os casos em que exista um acordo quanto à prova entre os sujeitos em litígio, pelo qual as partes designem o AMIM como meio de prova da incapacidade do sujeito titular do mesmo.
Essa convenção, pese embora restritiva dos meios de prova, é, à partida, admitida (artigo 345.º do Código Civil). Note-se, porém, que, a tratar-se de contratos celebrados com recurso a cláusulas contratuais gerais, são absolutamente proibidas – e, em consequência, nulas – as cláusulas que restrinjam a utilização de meios probatórios legalmente admitidos (artigo 21.º, alínea g), do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro).
Existindo uma convenção de prova validamente celebrada entre as partes, e correspondendo essa prova, por vontade expressa das partes, ao AMIM ou a atestado de natureza equivalente, fica prejudicado o recurso à prova pericial. Nesta hipótese, o problema é da restrição dos meios de prova, e não o de reconhecer ao AMIM um determinado valor probatório.
[1] Tal como definido no artigo 2.º da Lei n.º 38/2004, de 18 de agosto, considera-se «pessoa com deficiência» aquela que, por motivo de perda ou anomalia, congénita ou adquirida, de funções ou de estruturas do corpo, incluindo as funções psicológicas, apresente dificuldades específicas suscetíveis de, em conjugação com os fatores do meio, lhe limitar ou dificultar a atividade e a participação em condições de igualdade com as demais pessoas.
[2] As JMAI são criadas por iniciativa das ULS, existindo, pelo menos, uma por cada agrupamento de centros de saúde ou ULS (artigo 2.º, n.º 5).
[3] Na escolha do presidente das JMAI deve atender-se, preferencialmente, às suas competências em avaliação do dano corporal ou em deficiência e funcionalidade, ou comprovada participação em JMAI (artigo 2.º, n.º 7).
[4] É dispensada a constituição de JMAI para a avaliação dos doentes oncológicos recém-diagnosticados que pretendam beneficiar da atribuição de um grau mínimo de incapacidade de 60 %, no período de cinco anos após o diagnóstico (artigo 2.º, n.º 10). Nestas hipóteses, é competente para a confirmação da incapacidade e para a emissão do respetivo AMIM um médico especialista da unidade de saúde onde foi realizado o diagnóstico, diferente do médico que segue o doente.
[5] A avaliação da incapacidade de pessoas com deficiência obedece ao disposto no Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de outubro, diploma acima citado. A incapacidade é, regra geral, calculada de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais (TNI), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de outubro. Na avaliação da incapacidade, a cada situação de disfunção corresponde um coeficiente expresso em percentagem, que traduz a proporção da deficiência funcional, sendo a disfunção total expressa pela unidade, e os coeficientes ou intervalos de variação correspondem a percentagens de desvalorização funcional, que constituem o elemento base para o cálculo da incapacidade total. Sempre que a JMAI entender necessário um esclarecimento adicional sobre a situação clínica do avaliado, pode requer exames complementares, técnicos ou de especialidade. Finda a avaliação, a JMAI indica no respetivo AMIM a percentagem, em valor arredondado, de incapacidade do avaliado, bem como se essa incapacidade é, ou não, permanente. Considerando a JMAI que o grau de incapacidade arbitrado é suscetível de variação futura, do AMIM emitido deve constar a indicação da data da nova avaliação, levando em consideração o previsto na TNI ou na fundamentação clínica que lhe esteja subjacente.