Apontamento sobre a decisão do TJUE no processo C-566/22, Inkreal sro. v Dúha reality s.r.o.
- Foi uma questão exemplar a que, em sede de reenvio prejudicial, o Supremo Tribunal checo submeteu, em 26 de agosto de 2022, à consideração do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE)[1]. Não menos relevante viria a ser a decisão pelo Tribunal do Luxemburgo proferida, cerca de ano e meio volvido, em 8 de fevereiro de 2024, em reação à demanda formulada[2].
- De apreensão muito fácil, a pergunta enunciada pelo Supremo Tribunal checo teve a sua eclosão num rotineiro contrato por força do qual um indivíduo habitualmente residente na Eslováquia cedeu à Inkreal, uma sociedade com sede naquele mesmo Estado, os seus créditos decorrentes de dois contratos de mútuo celebrados, anos antes, com a Dúha Reality, outra sociedade também constituída de acordo com o direito eslovaco e, como a Inkreal, sedeada na Eslováquia. Integrava cada um dos contratos de mútuo mencionados uma cláusula estipuladora da competência dos tribunais checos para conhecer de qualquer litígio relacionado com os negócios. Precisamente junto de um tribunal checo, nem mais nem menos do que o Supremo Tribunal (Nejvyšší soud), veio a cessionária a instaurar ação visando a condenação da mutuária na restituição das quantias emprestadas[3].
- Sabido que as regras de competência jurisdicional uniformemente estabelecidas pelo Regulamento Bruxelas Ibis[4] apenas são aplicáveis a litígios assistidos de natureza transfronteiriça e posto que, salvo por efeito da designação das partes em proveito dos tribunais checos, a situação controvertida apresentava conexões exclusivas com um único Estado, a Eslováquia, ao Supremo Tribunal checo sobrevieram dúvidas sobre a justificabilidade da aplicação ao caso daquele instrumento europeu. Hesitação legítima, diga-se, já que ao longo das décadas foi o tema alvo de tomadas de posição discrepantes por parte da doutrina e dos tribunais nacionais europeus. Em conformidade, desincumbindo-se da obrigação imposta pelo artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), a mais alta instância jurisdicional checa decidiu suspender a instância e inquirir o TJUE sobre se o artigo 25.º do Regulamento Bruxelas Ibis deve ser interpretado no sentido de que é por ele abrangido um pacto atributivo de jurisdição através do qual as partes de um contrato cujos elementos objetivos o ligam exclusivamente a um Estado-Membro deliberam atribuir competência aos tribunais de outro Estado-Membro. Foram as seguintes as palavras articuladas pelo Nejvyšší soud: “Pode a aplicação do Regulamento [Bruxelas Ibis] basear-se somente no facto de que duas partes, com sede no mesmo Estado-Membro, acordaram atribuir competência a um [tribunal] de outro Estado-Membro da União, na perspetiva da existência de um elemento de estraneidade, que é um requisito essencial para a aplicabilidade do referido regulamento?”[5]
- Havendo ponderado os argumentos delineados na literatura jurídica e os derivados da jurisprudência de vários tribunais europeus, o advogado-geral (AG) Jean Richard de la Tour revelou-se favorável a que o TJUE oferecesse à demanda uma resposta de sentido negativo. De acordo com o seu parecer, “o artigo 25.º do Regulamento n.º 1215/2012 (…) deve ser interpretado no sentido de que, numa situação puramente interna, [o mesmo] não é aplicável com base apenas no facto de as partes domiciliadas no mesmo Estado-Membro terem designado um tribunal ou tribunais de outro Estado-Membro para dirimir quaisquer litígios entre elas que tenham surgido ou que possam surgir”[6].
- Veio a pronunciar-se num sentido diametralmente oposto o TJUE, para o qual uma escolha em proveito de tribunais de um Estado-Membro distinto daquele com o qual um contrato exclusivamente se conecta em razão dos seus elementos objetivos é suficiente para garantir a pertinência do artigo 25.º do Regulamento Bruxelas Ibis. Segundo o modo de expressão do tribunal sito no Luxemburgo, “o artigo 25.º do Regulamento n.º 1215/2012 (…) deve ser interpretado no sentido de que um pacto atributivo de jurisdição pelo qual as partes num contrato estabelecidas no mesmo Estado-Membro acordam na competência dos tribunais de outro Estado-Membro para dirimir os litígios emergentes desse contrato é abrangido por esta disposição, mesmo que esse contrato não tenha qualquer outra conexão com esse outro Estado-Membro”[7].
- Não foi esta a primeira vez, diga-se, que ao TJUE foi perguntado se um pacto atributivo de jurisdição é de molde a solevar um processo ao plano internacional. Havia-lhe endereçado esta mesmíssima questão, num passado não muito remoto, o Supremo Tribunal de Justiça português (STJ)[8]. Ocorreu que, na sequência de um acordo entre as partes no processo principal, o pedido de decisão prejudicial veio a ser retirado pelo tribunal a quo e, em consequência, foi ordenado o cancelamento do processo no registo do Tribunal de Justiça[9]. A despeito da oportunidade oferecida pela interpelação do STJ, a decisão no processo Inkreal representa, assim, a primeira incursão efetiva do TJUE no tratamento de uma questão que há muito dividia a jurisprudência e a doutrina de geografias diversas.
- No essencial, foram cinco as razões que conduziram o tribunal do Luxemburgo ao entendimento de que um pacto atributivo de jurisdição é suscetível de elevar um litígio ao plano internacional. O TJUE fez valer, em primeiro lugar, que o enunciado gramatical do artigo 25.º do Regulamento Bruxelas Ibis não restringe a aplicação da disposição aos pactos cuja internacionalidade resulte de elementos anteriores à própria electio fori[10]. Salientou, de seguida, que o entendimento propugnado é o único consentâneo com uma leitura harmonizada com o artigo 3.º, número 1, do Regulamento que cria um procedimento europeu de injunção de pagamento[11], disposição essa que define “caso transfronteiriço” como “aquele em que pelo menos uma das partes tem domicílio ou residência habitual num Estado-Membro distinto do Estado-Membro do tribunal demandado” [12]. Mais fez notar que, sendo exato pretender-se que a internacionalidade da situação controvertida é um pressuposto da aplicação do Regulamento Bruxelas Ibis, tal circunstância está cumprida quando, como no caso, “as partes (…) estão estabelecidas num Estado-Membro diferente do Estado-Membro do órgão jurisdicional chamado a pronunciar-se com base no pacto atributivo de jurisdição em causa”[13]. Enfatizou, adicionalmente, que a orientação propugnada é inculcada por alguns dos objetivos que norteiam o Regulamento Bruxelas Ibis[14], em particular pela finalidade do respeito pela autonomia das partes e pelo propósito do reforço da segurança jurídica e da previsibilidade[15]. Enfim, descartou a relevância do apelo à solução, distinta da afinal propugnada, constante do artigo 1.º, número 2, da Convenção da Haia de 30 de junho de 2005 sobre os acordos de eleição do foro[16].
- Excluída a oportunidade de uma avaliação, nesta ocasião, dos diversos argumentos manuseados pelo TJUE – por excessivamente técnica, remete-se uma tal análise para artigo a publicar em revista da especialidade –, circunscrever-nos-emos à explicitação, nesta sede, de que, como quer se entenda acerca do sentido da decisão e dos argumentos nela esgrimidos –, parece evidente reconhecer que o alcance da sentença Inkreal é iniludível. Por uma parte, a decisão legitima o que muitos entenderão classificar como verdadeiras “cláusulas de deslocalização judicial”[17]. Depois, e aspeto com aquele relacionado, a decisão aparece como redifinidora do papel da autonomia das partes na delimitação recíproca das áreas de intervenção dos regimes europeus e dos regimes nacionais. Não é, seguramente, coisa pouca.
- Seja, a terminar, a indicação breve de que o acórdão Inkreal já logrou projetar os seus frutos no plano interno. É disso boa ilustração um acórdão do STJ de 9 de julho de 2024 que, precisamente louvado na doutrina Inkreal, fez sua a determinação, nisso se afastando da decisão judicial recorrida[18], de que “[num caso como o decidendo], o exigido elemento de estraneidade de um litígio é o próprio pacto privativo de jurisdição que prevê a atribuição da competência a um Estado membro diferente. A perspetiva tradicionalista que impunha que o conflito tivesse natureza plurilocalizada, isto é, que a relação jurídica em litígio estaria em contato [sic] com diversas ordens jurídicas nacionais mostra-se arredada, pois o elemento internacional a considerar é o que resulta do pacto de jurisdição e, portanto, da vontade das partes”[19].
[1] Processo C-566/22 Inkreal sro. v Dúha reality s.r.o, [2022] JOUE C 432/12.
[2] Processo C-566/22 Inkreal sro. v Dúha reality s.r.o, ECLI:EU:C:2024:123.
[3] A instauração do processo judicial diretamente junto do Supremo Tribunal (checo) teve na sua base, ademais do já referido pacto atributivo de jurisdição, a solução constante do §11(3) do Código de Processo Civil checo, aprovado pela Lei nº 99/1963 (Zákon č. 99/1963 Sb., občanský soudní řád). De conformidade com ela, se aos tribunais da República Checa assistir a competência para conhecer do processo mas faltarem ou não puderem ser determinadas as condições de que depende a determinação do tribunal local territorialmente competente, pertence ao Supremo Tribunal a identificação do tribunal competente.
[4] Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2012 relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (reformulação) [2012] JOUE L351/1.
[5] Processo C-566/22 Inkreal sro. v Dúha reality s.r.o, [2022] JOUE C 432/12.
[6] Processo C-566/22 Inkreal sro. v Dúha reality s.r.o, Conclusões do Advogado-Geral ECLI:EU:C:2023:768, parágrafo 50.
[7] Processo C-566/22 Inkreal sro. v Dúha reality s.r.o (n1) parágrafos 39 e 40.
[8] Processo C-136/16 Sociedade Metropolitana de Desenvolvimento AS v Banco Santander Totta SA [2016] JO C 165/11. Foi a seguinte, na ocasião, a primeira questão formulada pelo órgão jurisdicional de reenvio: “Num litígio entre duas empresas nacionais de um Estado-Membro respeitante a contratos, a existência em tais contratos de cláusulas de jurisdição a favor de um outro Estado-Membro constitui elemento de estraneidade suficiente para originar a aplicação dos Regulamentos (CE) n.º 44/2001 e (UE) n.º 1215/2012 à determinação da competência internacional, ou é necessário aferir ainda da existência de outros elementos de estraneidade?”
[9] Cf. o Despacho do Presidente da Segunda Secção do Tribunal de Justiça de 10 de março de 2017 ECLI:EU:C:2017:237.
[10] Processo C-566/22 Inkreal sro. v Dúha reality s.r.o (n1)parágrafo 16.
[11] Regulamento (CE) n.º 1896/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006, que cria um procedimento europeu de injunção de pagamento [2006] JOCE L399/1.
[12] Processo C-566/22 Inkreal sro. v Dúha reality s.r.o (n1) parágrafos 20 e 21.
[13] Processo C-566/22 Inkreal sro. v Dúha reality s.r.o (n1)parágrafos 22 a 25.
[14] Cf. (n 4).
[15] Processo C-566/22 Inkreal sro. v Dúha reality s.r.o (n1) parágrafos 26 a 35.
[16] Processo C-566/22 Inkreal sro. v Dúha reality s.r.o (n1) parágrafos 36 a 38. Nos termos do artigo 1.º, número 2, da Convenção da Haia referida em texto, um processo não reveste natureza internacional quando, independentemente da localização do tribunal eleito, as partes litigantes residirem no mesmo Estado Contratante e a sua relação e todos os elementos pertinentes da causa estiverem associados unicamente a esse Estado.
[17] Cf., por exemplo Marie-Élodie Ancel e Guillaume Payan, ‘Espace judiciaire européen en matière civile: juillet 2024-mars 2024’ (2024) Revue trimestrielle de droit européen 181, 181, os quais aludem a uma “(…) clause de délocalisation à l’état pur, évinçant les tribunaux d’un État membre qu’on pourrait appeler l’État membre d’appartenance, c’est-à-dire, auquel tous les éléments objectifs de la situation se rattachent, au profit d’un autre État membre. »
[18] Cf. o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21 de março de 2024, proferido no processo 1132/23. 2T8OER-A.L1-6. Não obstante a prolação desta decisão ser subsequente à apreciação do caso Inkreal pelo TJUE, fez vencimento naquele Tribunal de segunda instância um entendimento conflituante com o afirmado pelo TJUE (seja notado, ainda assim, o voto de vencido lavrado pelo Juiz Desembargador Nuno Lopes Ribeiro).
[19] Cf. a decisão que, tendo como relator o Juiz Conselheiro Ricardo Costa, foi proferida no processo n.º 1132/23.2T8OER-A.L1-A.S1.