Em 24 de abril, o Mecanismo Nacional Anticorrupção (“MENAC”) lançou o alarme entre as entidades sujeitas ao Regime Geral de Prevenção da Corrupção, publicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 109-E/2021 (“RGPC”), com a emissão da Recomendação n.º 7/2024, em vigor desde junho.
Esta recomendação, textualmente sucinta – e, talvez por isso, geradora de maior confusão –, veio instar os Responsáveis pelo Cumprimento Normativo das entidades obrigadas a apresentarem declarações mensais perante o MENAC. Nessas declarações, deveriam as entidades obrigadas dar nota da eventual existência de “irregularidades” no cumprimento do RGPC. Por diversos motivos, a Recomendação gerou algum tumulto.
Desde logo, o caráter mensal das declarações representa um fardo substancial para os departamentos de cumprimento normativo das entidades. Ora, o desenvolvimento recente do cumprimento normativo em Portugal, enquanto área corporativa, leva a que, por via de regra, os departamentos em causa se encontrem já com recursos humanos e financeiros deficitários.
Por outro lado, não se compreende a que se refere o MENAC com a utilização do termo “irregularidades”. É certo que o legislador já o utilizara, de forma pouco rigorosa, no âmbito da possibilidade de suspensão de processos de contraordenação relacionados com o incumprimento do RGPC, nos seguintes termos:
“Quando a infração constitua irregularidade sanável, não haja um grau de culpa elevado nem condenação anterior por contraordenação da mesma natureza, o procedimento contraordenacional é suspenso, notificando-se o infrator para, dentro do prazo fixado, sanar a irregularidade em que incorreu.” (cfr. artigo 24.º/1)
No entanto, a sua utilização equivocada por parte do legislador não legitima a perpetuação de lapsos dogmáticos pelo MENAC. Com efeito, a irregularidade consubstancia, como se sabe, um vício menor de determinado ato, ao passo que a Recomendação parece ter a finalidade de abranger qualquer incumprimento, nomeadamente aqueles que tenham maior gravidade.
Mais tarde, o MENAC procurou clarificar aquilo que pretendia, através da publicação do modelo de documento a preencher pelo Responsável pelo Cumprimento Normativo no cumprimento da Recomendação. Neste documento, o MENAC aproveita para se defender das críticas, afirmando que a declaração mensal “constitui uma metodologia adequada tendo em vista a melhoria contínua das medidas e cuidados neles previstos, bem como para a elaboração dos relatórios de avaliação do Plano de Prevenção de Riscos, previstos nos n.ºs 4 e 5 do art.º 6º do Anexo ao Decreto-Lei n.º 109-E/2021, de 9 de dezembro, e dos relatórios de infrações ao Código de Conduta, previstos nos n.ºs 3 e 4, do art.º 7º, do mesmo Anexo ao referido diploma.”
Em todo o caso, esta solução é, quanto a nós, arriscada do ponto de vista constitucional, considerando o direito à não autoincriminação (cfr. artigo 18.º/2 da Constituição), aplicável igualmente no campo do direito contraordenacional (mutatis mutandis). Não se ignora, em defesa do MENAC, o entendimento compassivo do Tribunal Constitucional relativamente à compatibilidade do referido direito com o dever de colaboração com as autoridades setoriais, assim como a existência de deveres de reporte semelhantes – ainda que mais espaçados no tempo (cfr. e.g. artigo 18.º do Regulamento da CMVM n.º 2/2020).
De resto, parece pouco crível que o MENAC, dispondo de recursos limitados, face às suas pesadas atribuições – desde a fiscalização das entidades em Portugal com 50 ou mais trabalhadores até à recolha e tratamento de dados nacionais sobre a corrupção – venha a ter ainda capacidade para analisar as declarações recebidas.
Em qualquer caso, tratando-se de um instrumento não vinculativo, várias entidades – não havendo dados empíricos disponíveis, torna-se impossível a sua quantificação percentual – decidiram, pura e simplesmente, ignorar esta recomendação. Ou seja, tentando revelar proatividade, o MENAC acabou, face a tudo o que ficou exposto, por contribuir para alimentar as dúvidas sobre a sua capacidade de realização, numa fase crucial de consolidação institucional.
Naturalmente, é louvável a intenção de assegurar que as entidades obrigadas perspetivam o cumprimento normativo como uma tarefa constante, não se contentando com a elaboração e publicação dos instrumentos previstos no RGPC. Porém, quanto a nós, esse objetivo teria sido melhor conseguido através de um escrutínio rigoroso dos relatórios de execução previstos na lei – como, aliás, sucede nos reportes existentes ao nível da prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo.