Com a aprovação do Regulamento (UE) 2019/452 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de março de 2019, que estabelece um regime de análise dos investimentos diretos estrangeiros (IDE) na União[1], foi criado o primeiro instrumento transversal de escrutínio de IDE por razões de segurança ou de ordem pública no quadro da União Europeia. Vários Estados membros já tinham mecanismos equivalentes – como Portugal, atualmente com o Decreto‑Lei n.º 138/2014, de 15 de setembro, que estabelece o regime de salvaguarda de ativos estratégicos essenciais para garantir a segurança da defesa e segurança nacional e do aprovisionamento do País em serviços fundamentais para o interesse nacional, nas áreas da energia, dos transportes e comunicações[2] –, bem com como muitos dos parceiros comerciais da UE, mas não a própria União.
Em vez de substituir ou harmonizar esses mecanismos nacionais, este regime promove a cooperação, a partilha de informação e a transparência relativamente ao controlo de IDE entre a UE e os Estados-membros[3].
Desta forma, este regulamento, em conjunto com o controlo das operações de concentrações de empresas e com o controlo das subvenções estrangeiras feito pelo Regulamento (UE) 2022/2560 do Parlamento e do Conselho, de 14 de dezembro de 2022, relativo a subvenções estrangeiras que distorcem o mercado interno, visa, no essencial, garantir a concorrência efetiva no mercado interno por parte de empresas estrangeiras que atuem no espaço da União, promovendo maior transparência no investimento internacional feito na UE. É, portanto, um mecanismo essencial para assegurar a soberania económica europeia, sobretudo num quadro de protecionismo de alguns dos seus principais parceiros comerciais e num contexto de incerteza global, que começou a ser aplicado em 11 de outubro de 2020.
Para os efeitos do Regulamento IDE, a definição de investimento direto estrangeiro é particularmente ampla, abrangendo “um investimento de qualquer natureza por um investidor estrangeiro a fim de criar ou manter relações duradouras e diretas entre o investidor estrangeiro e o empresário ou a empresa à qual o capital é disponibilizado com vista ao exercício de uma atividade económica num Estado‑membro, incluindo os investimentos que permitam uma participação efetiva na gestão ou no controlo de uma empresa que exerça uma atividade económica”. Investidor estrangeiro, por sua vez, é “uma pessoa singular de um país terceiro ou uma empresa de um país terceiro que pretenda realizar ou tenha realizado um investimento direto estrangeiro”. E a análise, a que se fará referência adiante, corresponde a um “procedimento que permite avaliar, investigar, autorizar, condicionar, proibir ou anular investimentos diretos estrangeiros” (artigo 2.º, n.os 1, 2 e 3, do Regulamento).
Ao abrigo deste regulamento, os Estados-membros mantêm, em grande medida, a sua autonomia para lidar com as questões de IDE e segurança ou ordem pública, em lugar de criar um mecanismo europeu centralizado de escrutínio. Preveem-se antes requisitos mínimos para os mecanismos nacionais, por um lado, uma forma de coordenação das análises dos diferentes Estados-membros, por outro, e, por fim, uma intervenção da Comissão. E, mesmo a nível nacional, o regulamento não impõe aos Estados-membros a obrigação de estabelecerem um quadro para o IDE, mas impõe requisitos específicos que devem ser respeitados caso um Estado-membro pretenda adotar ou manter um quadro de análise a nível nacional.
Para este efeito, o regulamento prevê um mecanismo de análise dos Estados-membros por razões de segurança ou ordem pública. Para verificar se afeta alguma destas variáveis, os Estados-membros devem avaliar os seus efeitos designadamente sobre: as infraestruturas críticas; as tecnologias críticas e os produtos de dupla utilização; o aprovisionamento de fatores de produção críticos; o acesso a informações sensíveis ou a capacidade de controlar essas informações; a liberdade e o pluralismo dos media; se o investidor estrangeiro é controlado direta ou indiretamente pelo governo, incluindo os organismos estatais ou as forças armadas, de um país terceiro; se o investidor estrangeiro já esteve envolvido em atividades que afetassem a segurança ou a ordem pública num Estado‑membro; ou se existe um risco grave de o investidor estrangeiro se envolver em atividades ilegais ou criminosas. Esta é uma lista meramente exemplificativa de riscos para a segurança ou para a ordem pública[4].
Em segundo lugar, o regulamento prevê também um mecanismo de cooperação entre Estados-membros. Os Estados-membros passaram a estar obrigados a informar a Comissão Europeia e os outros Estados-membros de qualquer análise de IDE no seu território que esteja a ser feita. Cada Estado-membro pode fazer comentários ao Estado-membro a cujo território se dirige um determinado IDE sujeito a análise noutro Estado-membro que seja suscetível de afetar a sua segurança ou a sua ordem pública. Também pode ser emitida uma observação nos casos em que um Estado-membro não tenha efectuado qualquer análise, quer porque as suas regras de IDE (ainda) não se aplicam, quer porque não adotou quaisquer regras de análise de IDE. O Estado-membro a cujo território o IDE se destina deve tomar “devidamente em consideração” as observações dos outros Estados-membros.
Em terceiro lugar, o regulamento prevê o dever de os Estados-Membros informarem a Comissão Europeia de qualquer análise de IDE em curso. Independentemente de um Estado-membro ter, ou não, notificado a Comissão Europeia, esta pode emitir um parecer não vinculativo para um Estado-membro a cujo território se dirige o IDE, se considerar provável que o IDE possa afetar a segurança ou a ordem pública em mais de um Estado-membro ou se se tratar de projetos com financiamento significativo da UE, ou ainda se a Comissão Europeia dispuser de informações adicionais relevantes em relação a esse IDE. Além disso, um Estado-membro pode também solicitar à Comissão Europeia que emita um parecer se considerar que um IDE noutro Estado-membro é suscetível de afetar a sua segurança ou ordem pública. O Estado-membro a que se destina o IDE deve tomar “devidamente em consideração” o parecer no processo de análise do IDE.
Além disso, o regulamento introduz a obrigação de os Estados-membros apresentarem relatórios anuais sobre o controlo da segurança nacional, a fim de garantir um nível mínimo de transparência em relação ao IDE na UE. Para este efeito, o regulamento prevê um ponto de contacto entre cada Estado-membro e a Comissão para a transferência de informação relativa a IDE. Essa informação inclui: a estrutura de propriedade do investidor estrangeiro e da empresa na qual está previsto ou tenha sido realizado o IDE; o valor aproximado do IDE; os produtos, serviços e operações comerciais do investidor estrangeiro e da empresa na qual está previsto ou tenha sido realizado o IDE; os Estados-membros em que o investidor estrangeiro e a empresa na qual está previsto ou tenha sido realizado o IDE efetuam operações comerciais pertinentes; o financiamento do investimento e a sua fonte; e a data em que está previsto que se realize ou em que foi realizado o IDE. A transferência destas informações dá tanto à Comissão quanto aos Estados-membros a oportunidade de assinalarem as preocupações que considerem adequadas.
[1] Adotado na sequência da Comunicação da Comissão COM(2017) 494 final, “Acolher o investimento direto estrangeiro, protegendo simultaneamente os interesses essenciais”, de 13.09.2017.
[2] Sobre este, em particular, e de forma desenvolvida, cfr. M. Rosado da Fonseca, ‘O mecanismo português de análise dos investimentos diretos estrangeiros: dos antecedentes da sua criação às perspetivas da sua modificação em 2022 – parte I’, Revista de Concorrência e Regulação, n.º 48, outubro-dezembro 2021, pp. 81-128; Id., ‘O mecanismo português de análise dos investimentos diretos estrangeiros: modificação em 2023? Enquadramento e porquês’, Revista de Concorrência e Regulação, n.º 50, julho-dezembro 2022, pp. 57-103.
[3] A Comissão Europeia disponibilizou um documento com FAQs sobre este regime, atualizadas em junho de 2021, que se encontram disponíveis em URL: https://circabc.europa.eu/ui/group/be8b568f-73f3-409c-b4a4-30acfcec5283/library/7c76619a-2fcd-48a4-8138-63a813182df2/details. Para uma análise desenvolvida e atualizada, na doutrina jurídica, cfr. S. Poli / D. Gallo, ‘Enhancing European technological sovereignty: the Foreign Investment Screening Regulation and beyond’, in K. Armstrong / J. Scott / A. Thies (eds.), EU external relations and the power of law. Liber Amicorum Marise Cremona, Oxford: Hart, 2024, pp. 215-250 (em curso de publicação).
[4] Para a lista de todos os mecanismos nacionais existentes nos diferentes Estados membros, atualizada em 2024, cfr. List of screening mechanisms notified by Member States, disponível em URL: https://circabc.europa.eu/rest/download/7e72cdb4-65d4-4eb1-910b-bed119c45d47 (consultado em 02/07/2024).
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