Decisão antecipada da causa no decurso de processo cautelar: consequências processuais – Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 2 de outubro de 2024 (Processo nº 02001/22.9BEPRT)

Decisão antecipada da causa no decurso de processo cautelar: consequências processuais – Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 2 de outubro de 2024 (Processo nº 02001/22.9BEPRT)

1. O Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão recente, na sequência de recurso de revista, abordou algumas questões processuais conexas com a decisão de antecipar a decisão da causa principal no decurso de processo cautelar (acórdão de 2 de outubro de 2024, Processo nº 02001/22.9BEPRT).

A decisão teve origem num recurso de revista interposto do acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 21 de julho de 2023, que negou provimento ao recurso de apelação interposto da sentença proferida em 9 de março de 2023, pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, que antecipou a decisão da causa principal ao abrigo do disposto no artigo 121° do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Os pressupostos da revista eram os seguintes.

«[…] O TAF do Porto na sentença que proferiu (nos autos de providência cautelar antecipatória) julgou procedente a ação administrativa cujo conhecimento decidiu antecipar ao abrigo do art. 121° do CPTA (em despacho imediatamente anterior à sentença e proferido na mesma data – 09.03.2023).

[…]

Decidiu a sentença, […], anular os atos impugnados e condenar os Recorrentes a reabrir o procedimento nos termos supra indicados.

Os Demandados recorreram para o TCA Norte invocando: i) estar-se perante e uma situação de omissão de litisconsórcio passivo necessário (por não terem sido citados todos os contrainteressados – os identificados na alínea Y) do probatório), donde decorreria a exceção de ilegitimidade passiva (arts. 10°, n° 1, 57° e 89°, n°s 2 e 4, al. e) do CPTA); ii) verificar-se a caducidade do direito de ação, incorrendo a sentença de 1ª instância em erro de julgamento; e, iii) e erro de julgamento na interpretação do n° 6 do art. 38° da LTFP.

O acórdão recorrido entendeu que as questões de preterição de litisconsórcio necessário e da caducidade do direito de ação não podiam ser objeto da apelação por fora dela estar a decisão de antecipar o juízo sobre a causa principal, o que precludia, ainda que de forma implícita, o conhecimento das questões obstativas ao conhecimento de mérito.

Quanto ao mérito confirmou a sentença recorrida, negando provimento ao recurso».

2. A questão relevante tratada no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo diz respeito à impossibilidade, ou não, de conhecer, por parte do tribunal de recurso – por eventual trânsito em julgado -, as matérias de exceção (no caso, caducidade da ação e ilegitimidade passiva) no caso em que a decisão de antecipar o julgamento da causa principal não foi impugnada.

3. O Supremo Tribunal Administrativo decidiu que o Tribunal Central Administrativo, julgando o recurso de apelação da decisão antecipada da causa principal, nos termos do artigo 121º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, pode pôr em causa a própria decisão de antecipação do julgamento sobre a causa principal, ainda que não tenha sido formalmente objeto do recurso, devendo conhecer prioritariamente a matéria relativa às exceções, invocadas ou de conhecimento oficioso, que influam sobre a decisão de fundo.

A argumentação do Supremo tribunal Administrativo foi, no essencial, a seguinte:

«Efetivamente, o Acórdão do TCAN deveria ter conhecido da matéria desta exceção da ilegitimidade passiva por falta de intervenção de Contrainteressados, pois que, sendo matéria de conhecimento oficioso mas que não deixou de expressamente ser alegada no recurso de apelação dos Requeridos/Recorrentes, tem o resultado de – no caso da procedência da exceção – deixar potencialmente afetados, com a anulação contenciosa dos atos impugnados – os interesses de terceiros (no caso, Inspetores já nomeados) – que não foram chamados nem intervieram na discussão da causa.

Assim, é matéria que afeta a validade do julgamento da causa (e que, portanto, pode ser discutida em sede de impugnação deste julgamento), independentemente de se ter impugnado, ou não, a antecedente decisão de antecipar o juízo sobre a causa principal. Tal como exprimido no referido voto de vencido e tal como defendido na presente revista pelos Requeridos/Recorrentes.

Aliás, a alegação, por parte dos apelantes, de que não tinham sido chamados ao processo todos os interessados, equivale à imputação de que não se encontravam reunidos “todos os elementos necessários para a decisão final”, matéria que deve ser conhecida pelo tribunal “ad quem”, ainda que não esteja em causa uma impugnação da decisão de antecipação mas apenas uma impugnação da decisão final.

[…]

E, ainda que se entenda que a decisão de antecipação prevista no art. 121º do CPTA pressupõe a possibilidade da tomada de uma decisão de mérito (incluindo por procedência de alguma exceção perentória), tal não invalida que, nessa decisão antecipada, se julgue improcedente alguma exceção dilatória suscitada».

4. O nº 1 do artigo 121º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, permite ao tribunal antecipar a decisão sobre a causa principal, ainda durante o decurso do processo cautelar, desde que estejam reunidas as seguintes condições:

  1. O processo principal já tenha sido intentado;
  2. O processo cautelar contenha todos os elementos necessário para decidir de fundo;
  3. A decisão de fundo seja simples ou urgente.

Como se percebe, até intuitivamente, a antecipação da decisão da causa principal ainda durante a tramitação do processo cautelar coloca questões de articulação e harmonização da tramitação processual

Quer a decisão de antecipação do julgamento sobre a causa principal tenha sido antecedida, ou não, de decisão expressa sobre exceções invocadas, ou exceções de conhecimento oficioso, o julgamento sobre o fundo implica sempre uma pronúncia implícita sobre todas as questões impeditivas desse conhecimento.

O facto da decisão de antecipar o conhecimento do mérito da causa principal não ter sido impugnada não afasta a constatação de que algumas questões adjetivas adquirem uma importância e natureza substantiva no contexto da antecipação da decisão do processo principal durante a tramitação do processo cautelar. Como escreve o relator do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (Conselheiro Adriano Cunha – o acórdão também foi votado pelas Senhoras Conselheiras Suzana Tavares da Silva e Maria do Céu Neves), estas questões adjetivas constituem matéria que afeta a validade do julgamento da causa e que, portanto, podem ser discutidas em sede recurso da decisão final, independentemente de se ter impugnado, ou não, a decisão (processual) de antecipar o juízo sobre a causa principal.

Para além disso, e como foi notado, para se poder antecipar no processo cautelar a decisão final da causa principal é necessário que tenham sido trazidos para o processo cautelar todos os elementos necessários para o efeito, o que manifestamente não acontece quando a decisão afeta terceiros, interessados, que não foram chamados ao processo, e não puderam dar o seu contributo.

5. Em suma, trata-se de mais um passo na articulação dos requisitos adjetivos e substantivos do processo cautelar e do processo principal, colocada em causa com a antecipação da decisão de fundo fora do processo normalmente adequado.

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